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Na escuridão da mente (Paul Tremblay)

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naescuridãodamenteVocê quer saber um segredo? Vai guardá-lo com cuidado e amor? Isso não acontecerá de maneira óbvia, mas você e eu não estamos sozinhos aqui. Esse trecho da canção My Head is Full of Ghosts, de Bad Religion, é uma das citações que abrem Na escuridão da mente, de Paul Tremblay, cujo título original, não por acaso, é A Head Full of Ghosts. Uma cabeça (mente?) cheia de fantasmas não parece algo tão incomum quando se trata de um livro de terror, mas na medida em que uma adolescente de quatorze anos começa a martelar a ideia de que há vozes em sua cabeça, o incômodo parece preencher a nossa mente a ponto de querermos, o mais rápido possível, desvendar o porquê de tudo isso. Mas Merry esperou. Por quinze anos, Meredith Barrett esperou para contar a sua história, para contar como a sua mente reconstruiu tudo o que acontecera quando ela tinha oito anos.

John e Sarah Barrett tinham duas filhas: Marjorie e Meredith, esta chamada por todos de Merry. Depois de dezenove anos trabalhando em uma fábrica, John ficara desempregado. Foi mais ou menos aí que as coisas começaram a desmoronar, mesmo que, à época, Merry ainda não tivesse percebido exatamente o que estava acontecendo. Ela tinha Marjorie, sua irmã, que criava e recriava histórias nas quais elas eram personagens, e isso a confortava e fazia com que ela se imaginasse como a irmã, no futuro. Mas Marjorie também começou a desmoronar, e foi quando as coisas começaram a ficar difíceis para Merry.

Marjorie estava começando a manifestar sinais do surto psicótico que a acometeria e, posteriormente, se elevaria à esquizofrenia, mas seu pai – que após ficar desempregado tinha retomado suas raízes católicas – não viu as coisas dessa maneira; ele começou a pensar que ela estivesse  possuída por um demônio. Linha de raciocínio que, no início do livro, é veementemente contestada por Sarah, sua esposa, que acreditava que a filha estivesse doente e precisasse de cuidados médicos, não de devaneios religiosos. Mas essa leitura  é-nos apresentada como uma interpretação tardia de Merry. Quando as coisas estavam estranhas, ela ainda não conseguia entender o que estava acontecendo, embora sentisse medo.

Para nós, leitores, o clima de falta de segurança, de medo e pavor se instaura quando Marjorie diz à irmã que entra em seu quarto toda noite e a observa enquanto ela dorme. “Na noite de ontem, apertei seu nariz até que sua boca pequena se abrisse para pegar ar.” A irmã mais nova tenta, de todas as maneiras que uma criança de oito anos é capaz, manter seu quarto seguro, mas a irmã mais velha sempre entra, e mexe com as coisas e com a cabeça de Merry, e isso acontece na mesma época em que a filha mais velha dos Barrett começa a mostrar claros sinais de que não está bem, falando coisas estranhas, vomitando do nada,  entre outros.

As informações sobre o real estado de Marjorie vão se desenhando aos poucos. Ela está se consultando com um psiquiatra, mas não parece estar melhorando e, mesmo contra o desejo de sua esposa, que esperava que o tratamento médico fizesse efeito, John começa a investir na ideia de que Padre Wanderly pudesse ajudá-los a lidar com a situação que, para o senhor Barrett, trata-se de possessão. Nesse contexto, engendrada pelo referido padre, aparece a oportunidade para tirá-los da situação financeira complicada em que  se encontravam: um reality show, chamado A Possessão, filmado na casa deles, contendo seis episódios, com o intuito de exibir, ao vivo (ou o mais próximo disso), o exorcismo de Marjorie.

O livro é narrado a partir de três perspectivas: duas correspondem ao presente e uma ao passado. Inicialmente, temos Meredith, no presente, revisitando sua casa de infância após quinze anos. Ela está acompanhada de Rachel, uma best-seller que estava escrevendo um livro não ficcional sobre a história da família Barret, e Merry será sua consultora criativa, isto é, vai lhe contar a história a partir do que sua memória guardou e recriou daqueles eventos. Em seguida, somos apresentados à Karen Brissette, uma blogueira apaixonada por histórias de terror que começou a escrever uma série de posts no blog sobre o programa que narrara a tragédia particular da família Barrett: A Possessão. Então somos colocados no contexto dos acontecimentos, que são narrados pela Merry com oito anos.  De certo modo, são narrados pela Meredith de 23 anos, mas com um estilo de contar que remonta às suas lembranças de oito anos.  No decorrer do texto, descobrimos que as três perspectivas narrativas são orquestradas por Meredith, que é a autora do blog de terror. As diversas vozes narrativas assumidas por Merry são análogas a uma de suas habilidades quando criança, a de imitar vozes.

Essa habilidade nos proporciona um dos momentos mais sinistros do livro. Marjorie já estava doente, a casa estava cheia de câmeras, para a gravação do programa de TV. Nesse dia, durante o jantar, Merry imitou vozes e foi congratulada por isso. Pouco depois, Marjorie teve um surto, no qual assumiu diversas vozes estranhas, vomitou, entre outros. Quando o surto estava quase passando:

Marjorie cantarolou a melodia novamente, mudando de tom e timbre tão rápida e abruptamente que era desorientador, e parecia que minhas orelhas iriam estourar. Ela rastejou pela sala de jantar, se movendo como um lagarto ou algo tão antigo quanto, em direção à entrada e as escadas.
Então ela disse de longe:
— Eu também sei imitar vozes, Merry.

Nesse momento, foi inevitável que eu me lembrasse de mais uma das citações que abrem o livro: “É tão agradável ficar neste quarto enorme e me rastejar como eu bem entender!” O trecho pertence ao livro O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, que é mencionado no decorrer da narrativa. E, mesmo quando não é diretamente mencionado, se faz presente na casa dos Barrett, cenário da história narrada. Um dos momentos mais tensos da narrativa quando, durante uma crise, Marjorie ameaça arrancar a língua da irmã, acontece no solário, cujo papel de parede é amarelo. Amarela, também, é a cor que Merry, já adulta, decidiu pintar a sua sala de estar.

O jogo com as cores ao longo da narrativa é bastante eficiente em delinear a articulação do enredo. O quarto de Merry, no apartamento em que ela vive já com vinte e três anos, tem as paredes azuis e, ao centro, uma cama com um edredom felpudo branco. Ele parece recriar a atmosfera do quarto que ela tivera na infância: uma casa de papelão, branca, que ficava no centro do seu quarto, todo pintado de azul, o que fazia com que ela sentisse que tinha um céu todo para si. A casa de papelão acaba por assumir um papel dúbio no decorrer da narrativa. Inicialmente, ela era o lugar em que Merry se sentia protegida. Pouco tempo depois, passou a ser o espaço em que coisas estranhas aconteciam e, por isso, na metade do livro, acabou sendo colocada no porão da casa dos Barrett.

Dúbia, também, é a simbologia da cor branca. Às vezes, ela transmite paz e está presente em diversos ritos de passagem. Entretanto, ela também é a cor dos lençóis que usamos quando queremos nos fantasiar de fantasmas. Para o pintor Kandinsky, o branco produz sobre nossa alma o mesmo efeito do silêncio absoluto. E se levarmos em consideração a simbologia conforme a qual a morte precede a vida, o que conceberia o nascimento como um renascimento, o branco é, primitivamente, a cor da morte. O branco, como não cor, também é aquilo que se desfaz, torna-se transparente quando misturado a outras cores, como o sal (ou qualquer outra substância) que se coloca em um molho vermelho; como a palidez que tomou conta do rosto de Marjorie durante boa parte da narrativa; como o macarrão de Merry que, diferentemente do macarrão dos outros três membros da família, não continha molho vermelho, que ela detestava, apenas queijo e manteiga; como o espaço da memória que não conseguimos preencher; como as lacunas constituintes da história de Merry e sua família, enfim.

A exemplo do amarelo, do azul e do branco, o verde aparece em diversas situações descritas em Na escuridão da mente. Geralmente, as coisas ruins que acontecem com os Barrett, de certo modo, sempre se relacionam com a cor verde, que está presente desde os primeiros bilhetes que Marjorie envia para a irmã, passando pela história de todas as coisas crescendo pela cidade,  o vômito de Marjorie, durante as crises,  e tem seu ponto culminante como a cor da panela do molho de macarrão do último jantar da família Barrett na casa em que Merry passou sua infância. Essa cor volta, emblematicamente, como a cor que Merry, já adulta, pintou sua cozinha. Isso assume um teor simbólico quando, quase no fim do livro, descobrimos que na cozinha da antiga casa da família Barrett  aconteceu mais do que se poderia imaginar no início do livro.

(Os próximos cinco parágrafos – conto a citação como parágrafo também – contêm spoilers sobre o desfecho do livro. Caso você, como eu, não goste de spoilers, pule-os).

No dia em que o Padre Wanderly disse que precisaria do auxílio de Merry para ajudar na melhora de Marjorie, ela estava vestindo um suéter vermelho e, quando o padre lhe falou que parecia aconchegante, ela disse: “não é aconchegante. Estou usando porque sou uma repórter”. Quinze anos depois, quase no desfecho do livro, quando Merry conta à Rachel como sua irmã a manipulou de modo que ela colocasse veneno no molho, vermelho, do macarrão, o que acabou fazendo com que seus pais e sua irmã morressem, ela está usando um sobretudo vermelho: “Estou vestindo um suéter preto, jeans pretos, botas pretas e meu casaco preferido; um sobretudo vermelho espalhafatoso que não é quente o suficiente.” E, depois que ela contou tudo, a cafeteria em que estava com a escritora, ficou muito fria, quase congelando, do mesmo jeito que, supostamente, ficara o quarto de Marjorie no dia do exorcismo. Nesse ponto, é impossível não imaginar que é como se, ao fundo, estivesse tocando um trecho da canção de Bad Religion que dá nome ao livro: “você e eu não estamos sozinhos aqui”.

Todas as vezes em que Merry se relaciona com a cor vermelha, ela parece assumir outra persona ou, de algum modo, estar diante de uma perda ou de um rito de passagem. No início do livro,  ela conta que, quando criança, amarrava fio dental vermelho nos dentes frouxos e o deixava lá até que eles eles caíssem. No passado, quando usou o suéter vermelho, ela estava fingindo que era uma repórter, usava até um caderninho que ganhara de um dos membros da equipe do reality show sobre sua família. Em sua casa, já adulta, o quarto vermelho era o quarto de mídia, onde ela tinha tudo relacionado ao mundo do terror, ou seja, de onde ela tirou a maioria das referências que citou, como Karen Brissette, no blog:

O Exorcista e suas quatro sequências e prequelas; O Exorcismo de Emily Rose; O Último Exorcismo; The Devil Inside Me; Invocação do Mal; Constantine; O Ritual; REC 2Horror em Amityville, as duas versões; Atividade Paranormal e suas sequências; A Morte do Demônio I e II; Exorcismo. — Rapidamente, explico como outros títulos como Sessão 9A Casa de Noite Eterna, A Mansão Macabra e O Iluminado se encaixam também nessa subseção. Sobre livros, comento sobre outros títulos nobres além do óbvio escrito por William Peter Blatty. Incluem Come Closer, de Sara Gran; Pandemonium, de Daryl Gregory; O Bebê de Rosemary, de Ira Levin. Aponto alguns títulos de não ficção, como The Exorcist: Studies in the Horror Film; American Exorcism: Expelling Demons in the Land of Plenty; Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo; e até mesmo o risivelmente ruim Pigs in the Parlor: The Practical Guide to Deliverance.

Será que quando misturou o cianeto de potássio no molho, vermelho, do macarrão, Merry o fez por obediência, cega, à irmã – o que parece ser verdade – ou por que já estava sob a influência do que quer que fosse que estivesse na mente de sua irmã? Nesse ponto, as interpretações extrapolam o âmbito do racional – e eu já estou ignorando as evidências de que a filha mais velha dos Barrett sofresse de esquizofrenia -, afinal,  trata-se de um livro de terror, mas e se o demônio tivesse abandonado Marjorie e se alojado na mente de Merry? Quando está apresentando o seu apartamento à Rachel, em um determinado momento, Merry diz que ele é um lugar legal para repousar seus ossos cansados.  Essa afirmação é prontamente rebatida por Rachel, que diz: “Você é jovem demais para ter ossos cansados”, o que é verdade, pois ela tem apenas vinte e três anos. Mas e se essa fala não for inteiramente dela? E se a fala for de algum demônio antigo, mais especificamente, do demônio que supostamente estivera no corpo de sua irmã?

E se isto, o demônio ter abandonado o corpo de Marjorie e se alojado no corpo de Merry, tiver acontecido antes de Marjorie morrer? Quando vai falar sobre o último episódio de A Possessão, Karen Brissette – que é a Merry escrevendo em um blog a partir da perspectiva de uma adolescente, imitando a voz narrativa de uma adolescente – ao dissecar a cena do corrimão, fala sobre um momento em que “não há som e não conseguimos ver rosto nenhum. Meredith poderia ser Marjorie e Marjorie poderia ser Meredith”. Seria um prenúncio de que Merry se tornaria a irmã, mas não pelas coisas que faziam com que ela a admirasse, mas por ter sido possuída pelo demônio que outrora estivera em Marjorie? O leitor fica tão concentrado em descobrir o que estava acontecendo com Marjorie que, quando é informado de que a história não é apenas sobre um exorcismo, mas também sobre o envenenamento que vitimou três dos quatro membros da família Barrett, se dá conta de que deixou de observar diversas pistas. Quando interrogada por Rachel se  era Karen, isto é, se ela acreditava em tudo creditado à Karen ou se Karen era uma personagem, Merry respondeu: “Karen é apenas um pseudônimo, nada mais. Não tenho interesse algum em escrever ficção. Sim, acredito em tudo o que escrevi, senão não teria escrito.”

No primeiro capítulo do livro, antes que Merry começasse a contar a história de sua família, além de dizer que a história não era sua, afinal envolvia mais três pessoas, ela disse que não confiava na história por inteiro. Ela ressaltou que suas lembranças misturaram-se aos pesadelos, às coisas contadas por tios e avós, às lendas urbanas, aos elementos da cultura POP, às mentiras propagadas nas plataformas digitais, enfim. Para ela, sua história pessoal é literal e figuradamente assombrada por forças externas e é quase tão terrível quanto a que de fato aconteceu.

Para ser sincera, e deixando de lado todas as influências externas, existem algumas partes das quais me lembro com tantos detalhes horríveis que temo me perder no labirinto das lembranças. Há outras que permanecem confusas e misteriosas como se fossem a mente de outra pessoa e temo que, em minha cabeça, eu tenha provavelmente misturado e comprimido as linhas do tempo e os acontecimentos.

Na última página do livro, parecemos compreender o que ela quis dizer. A história da família Barrett contém muitas lacunas, subidas e descidas. Ela é contada mais por sugestões e suposições do que por afirmações. Resta ao leitor tentar articular o que se sabe com o que se imagina para, desse modo, preencher algumas das lacunas. Na escuridão da mente é um exímio livro de terror, feito para fãs do gênero, e, como tal, apresenta alegorias e elabora críticas sobre diversas esferas da sociedade sem, em momento algum, perder a linha narrativa que sobe e desce a escada da antiga casa dos Barrett, que lembra as teclas de um piano. Nesse cenário, a cada passo em um lance de escada, cuja simbologia remete tanto à ideia de ascensão quanto à ideia de queda – aludindo às relações entre o céu e a terra – toca-se uma triste e assustadora melodia.

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