– Não aguento mais isso – disse. – Eu te amo, mas não acho que é o bastante, acho que nunca vai ser o bastante. Eu não quero viver assim, Georgie. (p.74).
Eu acredito em Rainbow Rowell. Foi o que pensei quando vi a capa do mais recente romance escrito pela autora de Eleanor & Park, um dos melhores livros que li em 2014. Olhei, com certa desconfiança, para a, quase sem quase nenhum atrativo, capa de Ligações. A Novo Século, editora responsável pela publicação, aqui no Brasil, dos quatro livros da autora estadunidense, manteve a ideia da capa da edição americana: um telefone amarelo e o título do livro escrito em uma fonte que cumpre o papel de simular a aparência do fio de um aparelho de telefone que caiu em desuso há, pelo menos, dez anos.
Eu realmente acredito em Rainbow Rowell. Foi o que eu pensei depois de ler a sinopse de Ligações. Georgie McCool e seu marido, Neal Grafton, têm duas filhas e uma vida feliz. Quase feliz. Infeliz, na maior parte do tempo, com alguns momentos felizes. Eles não sabem mais o que têm. Mas tentam não lidar com isso até que Georgie, a dois dias de viajar com o marido e as filhas para passar o Natal com a sogra, em Omaha, informa ao marido que não poderia ir, pois teria de ficar com Seth – seu melhor amigo e companheiro de trabalho desde os tempos da faculdade – escrevendo o roteiro de um programa que, finalmente, eles conseguiriam fazer. Depois de uma conversa permeada pelo silêncio e o rancor, Neal viaja, com as duas filhas, e Georgie fica em Los Angeles, para trabalhar.
Aquele programa era o sonho de Georgie. Era o sonho de Seth. Eles se conheceram quando trabalhavam na revista da faculdade, mesmo lugar em que conheceram Neal; este, ao contrário daqueles – que escreviam juntos uma coluna na página dois da revista Spoon – era o cartunista responsável por uma aclamada, pelo menos por Georgie, tirinha da revista. Georgie e Seth sempre quiseram ter o próprio programa de comédia, mas tiveram de passar boa parte da vida escrevendo roteiros para programas que não eram exatamente o que eles queriam fazer. Às vésperas do Natal de 2013, conseguiram uma reunião com alguém que se interessara pelo programa. Teriam de passar os próximos dias escrevendo, pois a reunião aconteceria no dia 27 de dezembro. Precisavam de quatro roteiros prontos. Era tudo ou nada. Mas também chegara o momento do tudo ou nada para o casamento de Georgie e Neal. Ele estava em Omaha; ela estava em Los Angeles. Ambos estavam infelizes, mas não queriam admitir isso.
Quando li Eleanor & Park, antes da metade do livro eu já sabia que a Rainbow Rowell era uma autora que sabia escrever sobre o amor e sobre a dor. Não se trata de escrever uma história real, mas uma história possível pois, a meu ver, a ficção tem mais a ver com possibilidade do que com realidade. É por isso que ela é tão necessária, é por isso que ela me encanta. É por isso que aceitamos fazer o pacto ficcional. Eu fiz. Quando Georgie McCool, cujo celular só funcionava se estivesse conectado ao carregador, se deu conta de que, ao usar o telefone amarelo que ficava no quarto que ocupara quando ainda morava na casa da mãe, conseguia falar com o Neal de 1998, época em que eles ainda eram namorados, decidi apostar todas as minhas fichas (com o perdão do trocadilho jurássico) em Ligações.
A estruturação do livro é feita por capítulos curtos, nos quais se alternam, majoritariamente, discurso direto e discurso indireto. Os capítulos não seguem uma ordem cronológica. Em um momento, vemos um fato ocorrendo em dezembro de 2013; em outro, um que acontecera em 1998. O foco narrativo do romance transita entre a primeira e a terceira pessoas. Por diversas vezes, Georgie assume o foco narrativo para problematizar algo previamente apresentado pelos diálogos, que são um dos maiores trunfos da autora. Rainbow Rowell é muito boa em construir diálogos. Eles são muito bem escritos e cumprem a função de apresentar a história e caracterizar os personagens, tanto física quanto psicologicamente.
É quando os protagonistas começam a dialogar, isto é, quando a narrativa recua no tempo e se debruça sobre o percurso trilhado por Georgie e Neal, que nos apaixonamos por eles. Inicialmente, mais pela Georgie do que pelo Neal. Depois, aos poucos, assim como fez com a Georgie, o Neal começa a nos cativar e, por vezes, nos irritar. Eventualmente, os dois acabam nos irritando, não por nos lembrarem de pessoas horríveis, mas por fazer com que nos lembremos do que há de mais fascinante e assustador nas pessoas: a falha natureza humana. A capacidade de fazer escolhas ruins. A capacidade de dizer palavras que ferem e a capacidade de tentar consertar os erros.
Georgie era, conforme o sobrenome McCool anuncia, uma garota legal, uma garota engraçada. Ela adorava séries dos anos 70, amava e queria ser roteirista de séries de comédia. Era, a seu modo, expansiva. Não por naturalidade, mas por necessidade. Se quisesse algo, faria o que fosse possível para tê-lo. Neal, como disse, em uma das muitas conversas que teve com a Georgie, não era bom em querer coisas. Ela disse que era boa em querer pelos dois. E era. Queria se casar com Neal. Queria ter filhos e queria ser uma roteirista de sucesso. Teve duas filhas. Antes que a primeira, Alice, nascesse, Neal decidiu abandonar o emprego – que odiava – para cuidar da criança. Foi a solução que encontrou para aplacar a insegurança que atingira Georgie na reta final da gravidez. Ela temia que eles não conseguissem criar a filha se trabalhassem durante todo o dia. Ficou feliz com a decisão do marido de largar o emprego – pelo qual ele recebia pouco – para cuidar da filha. Quando Noomi (Naomi, mas apenas a avó paterna a chamava assim) nasceu, Neal continuou a cuidar das filhas para que Georgie trabalhasse. E ela trabalhava muito. Chegava tarde em casa, quase nunca estava presente na hora do jantar.
Neal era calado, recluso, e extremamente observador. Ele vira Georgie bem antes de ela se interessar por ele; soube que queria estar com ela bem antes de efetivamente estar. Mas ele não era de muitas palavras. Sua personalidade é apresentada aos leitores por meio de suas expressões faciais, descritas com precisão ao longo do livro. Quando as covinhas apareciam, ele estava sorrindo, mesmo que quase nunca sorrisse. Sua respiração denunciava quando ele estava irritado. Mas ele evitava, ao máximo, demonstrar como se sentia. Mas Georgie sabia. Aprendeu a interpretar o introvertido Neal.
Com a introdução das conversas telefônicas entre a Georgie de 2013 e o Neal de 1998 – que não sabia que estava conversando com a “Georgie do futuro” – podemos perceber que Neal protagoniza uma inversão das funções da linguagem. Geralmente, quando se falam ao telefone, as pessoas fazem o uso da função fática, isto é, utilizam, em excesso, expressões como “aham”, “uhum”, “oi”, entre outras. Entretanto, no caso de Neal, era o contrário. O Neal de 2013, que conhecemos no primeiro capítulo do livro, usa poucas e curtas palavras enquanto conversa com sua esposa. Quando Georgie fala ao telefone com o Neal de 1998, ele usa frases maiores e poéticas. Diz que a ama, que sente sua falta, entre outros. É claro que o Neal das ligações era mais jovem, com menos responsabilidades, logo, mais descontraído, mesmo que descontração e Neal na mesma frase seja algo paradoxal. Mas foi pelo Neal das ligações que Georgie se apaixonara. Aquele que não falava muito com os outros, mas se sentia quase à vontade para falar com a mulher que amava.
Era esse Neal que Georgie estava tentando resgatar na semana em que eles ficaram separados. Na semana em que, ao usar o telefone da casa de sua mãe, falava com o Neal do passado, Georgie tentaria descobrir quando foi que o relacionamento deles descarrilhara, e, de posse desse conhecimento, tentaria fazer escolhas melhores. Mas ela ainda não sabia quais eram essas escolhas. Ela não sabia nem mesmo se estava falando com o Neal do passado ou se estava alucinando por não conseguir falar com ele no presente.
Para sair do impasse que a partida silenciosa de Neal deixara, Georgie teria de colocar o telefone no ouvido, desenrolar o fio e ouvir; não apenas o Neal do passado, não apenas o silêncio do Neal do presente, mas ouvir, nas palavras que proferia enquanto falava com Neal, o que a Georgie do presente fez no passado e como suas ações a trouxeram ao presente. Enquanto Georgie desenrola o fio do telefone para compreender qual é o lugar que Neal ocupava atualmente em sua vida e qual é o lugar que ela queria que ele ocupasse em sua vida, Rainbow Rowell desenrola o fio narrativo de um livro que fascina, encanta, e nos faz refletir sobre o fato de que, mais do que falar sobre ligações telefônicas, seu novo romance nos fala sobre a ligação que há entre pessoas, gestos, vontades e escolhas.
Uma das minhas falas preferidas de Eleanor & Park é a seguinte: a gente acha que abraçar uma pessoa com força vai trazê-la mais para perto. Pensamos que, se a abraçarmos com muita força, vamos senti-la, incorporada em nós, quando estivermos longe. Com isso em mente, terminarei este post e abraçarei, bem forte, o meu exemplar de Ligações, para que eu possa senti-lo mesmo quando estiver longe dele e, principalmente, longe de mim.