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A Assombração da Casa da Colina (Shirley Jackson)

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a_assombracao_da_casa_da_colinaUma colina não é exatamente uma montanha, talvez ela esteja mais próxima de ser um morro do que de ser montanha. Ela é o que fica entre o chão e o céu, na metade do caminho, e guarda segredos tanto de um quanto do outro. Embora em diversas culturas a colina seja vista como a primeira manifestação da criação do mundo, pois sua saliência a diferencia do caos inicial, para os celtas, ela simboliza o outro mundo.

NENHUM ORGANISMO vivo pode existir com sanidade por longo tempo em condições de realidade absoluta; até as cotovias e os gafanhotos, pelo que alguns dizem, sonham. A Casa da Colina nada sã, erguia-se solitária em frente de suas colinas, agasalhando a escuridão em suas entranhas; existia há oitenta anos e provavelmente existiria por mais outros oitenta. Por dentro, as paredes continuavam eretas, os tijolos aderiam precisamente a seus vizinhos, os soalhos eram firmes e as portas se mantinham sensatamente fechadas; o silêncio cobria solidamente a madeira e a pedra da Casa da Colina, e o que por lá andasse, andava sozinho.

Assim começa A Casa da Colina,  de Shirley Jackson, um dos maiores clássicos do terror. Talvez vocês não reconheçam, de imediato, mas já “estiveram” nessa casa, afinal, o título original do livro é The Haunting of Hill House, que também é o nome da série da Netflix que foi livremente inspirada no livro da Rainha do Terror. Entretanto, não pensem que, por terem visto a série, não se assustarão com o livro, porque  além de ela não ser  uma adaptação fidedigna do romance, série e livro são mídias diferentes.

Ao optar por iniciar a narrativa descrevendo, brevemente, a casa, a autora acaba por situá-la como uma personagem do romance. E, já de início, é possível notar que subverte-se a ordem de uma casa como lugar de segurança, conforto e aconchego, pois a Casa da Colina, desde sua primeira aparição no livro, é caracterizada como insana e solitária. É importante atentarmo-nos à personificação da casa porque o fato de ela manifestar características humanas repreensíveis é um dos pontos chaves da constituição do tipo de terror elaborado pela escrita de Jackson.

John Montague, doutor em filosofia com formação em antropologia, nutria interesse por manifestações sobrenaturais. Ancorado nesse interesse, organizou uma expedição para a Casa da Colina a fim de averiguar, durante os três meses que passaria lá, os segredos guardados por aquela soturna casa de oitenta anos. Para acompanhá-lo nesse estudo, ele convidou diversas pessoas, mas, no fim, só conseguiu a confirmação de quatro. A primeira delas é Luke Sanderson, sobrinho da atual dona da casa que seria investigada. Apesar de ser mentiroso e ladrão, Luke parecia ter um forte instinto de autopreservação, o que o Dr. achou que, de certo modo, o qualificava como convidado ideal para passar um tempo naquele lugar. Além dele, confirmaram presença Theodora e Eleanor Vance.

A primeira tinha uma loja de antiguidades, era uma artista que assinava seus desenhos como Theo, e sensitiva, motivo pelo qual fora convidada para a expedição à Casa da Colina. Ela se apresentava apenas como Theodora, sem sobrenome. Seu mundo era “feito de prazeres e cores suaves”. Já Eleanor Vance era uma mulher de trinta e dois anos, sozinha, que dormia em uma cama no quarto da sobrinha. Passara boa parte de sua vida cuidando da mãe, acamada, e, quando ela falecera, fora morar com a irmã, o cunhado e a sobrinha. Eleanor foi uma das escolhidas para passar três meses na Casa da Colina porque quando tinha doze anos, e sua irmã dezoito, estivera envolvida com fenômenos de poltergeist. À época, seu pai havia falecido há menos de um mês, e, do nada,  começou a chover pedras sobre sua casa.

É a partir do olhar de Eleanor que fazemos o trajeto até a Casa da Colina. E é acompanhando o seu percurso até essa casa que tomamos notas das falas que parecem avisar à Eleanor de que é um erro ir àquela casa. Primeiro, tem a confusão com a irmã, que a proíbe de usar o carro – mesmo que ela tenha investido dinheiro na compra do automóvel, que pertence às duas. Depois, por meio do aparecimento de uma velhinha bastante sinistra em quem Eleanor esbarra quando está indo pegar o carro escondido da irmã. Para se redimir com a velhinha, Eleanor pagou-lhe um táxi. Entretanto, quando o taxista perguntou para onde ela estava indo, a velhinha sorriu e respondeu: “Depois eu digo”. Em seguida, ela olhou para Eleanor e disse que rezaria por ela. Quando chegou à cidade em que ficava a Casa da Colina, Hillsdale, Eleanor, ao parar para lanchar, ouviu de um morador local: “Todo mundo vai embora daqui. Ninguém vem para cá.” Para completar, ao chegar no portão da Casa da Colina, o caseiro, Sr. Dudley, lhe disse: “Não vai gostar daqui — disse. — Vai-se arrepender de ter vindo.”

A narração em terceira pessoa utiliza Eleanor como balizadora as ações da casa e dos outros personagens do livro de Shirley Jackson.  Embora o foco narrativo seja na terceira pessoa, eventualmente Eleanor  se intromete na narrativa por meio do discurso indireto livre para mostrar-nos suas impressões acerca da casa e das outras pessoas que também estavam na residência. Isso acontece quando sua própria consciência lhe avisa dos perigos que ela correria ao entrar na casa: “A casa era vil. Estremeceu e pensou, as palavras fluindo livremente no silêncio de sua mente estarrecida, a Casa da Colina é vil e infame, é doentia; saia daqui imediatamente.” Ela não saiu. Entrou na casa, conheceu a pouco simpática Sra. Dudley, cozinheira, e, aos poucos, os demais convidados começaram a chegar.

Quando todos já estavam na casa e haviam jantado, Eleanor perguntou ao Dr. Montague o porquê de eles estarem lá. Ele disse que preferia falar sobre isso na manhã seguinte, mas, depois da insistência do grupo, disse que temia que se falasse sobre a história da casa, alguns deles poderiam desistir, e não seria fácil ir embora à noite, já que os portões estavam trancados – o Sr. e a Sra. Dudley sempre trancavam tudo – e completou:

A Casa da Colina tem reputação de insistir em hospitalidade; parece que não gosta de perder seus convidados. A última pessoa que tentou deixar a Casa da Colina no escuro — foi há dezoito anos atrás, garanto — foi morta na curva da estrada, quando seu cavalo disparou e a imprensou contra aquela árvore grande.

Essa fala do Dr., ao mesmo tempo em que faz com que nós, leitores, pensemos que ele, Eleanor, Theodora e Luke devessem sair de lá o mais rápido possível, também faz com que pensemos que está tudo bem eles passarem a noite lá, já que a outra opção sugere que eles fossem morrer. Esse momento, aparentemente sem relação com o resto da história, só volta a nos assombrar no desfecho do livro, quando já aconteceram tantas coisas que nem conseguimos mais nos lembrar dele.

Em seguida, Dr. Montague começou a contar a historia da casa. Ela fora construída por Hugh Crain, cuja esposa morrera minutos antes de conhecer a casa em que moraria, pois a carruagem que a levava capotou na estrada. Além do esposo, ela deixou duas filhas, pequenas. O Sr. Crain se casou mais duas vezes. A segunda Sra. Crain morreu de uma queda, e a terceira morreu na Europa. Após a morte da terceira esposa, Hugh Crain decidiu fechar a Casa da Colina e as filhas, que ficaram sob os cuidados da governanta enquanto a madrasta e o pai viajava pela Europa, foram morar com uma prima. O Sr. Crain não voltou para o país. Após crescerem, as duas irmãs passaram o resto de suas vidas brigando pela casa. A mais nova se casou, e a mais velha fora morar na casa e arrumara uma acompanhante, que ficou com a casa quando ela faleceu.

Quando a irmã mais velha era viva, a mais nova vivia querendo alguns artefatos da casa, e elas brigavam muito por causa disso. Quando herdara a casa, a acompanhante insistia em dizer que a irmã mais nova entrava lá, à noite, e roubava coisas, porque, aparentemente, sumiam objetos. Entretanto, a casa era trancada todas as noites, e permanecia assim, quando amanhecia, o que indica que se alguém mexia nas coisas da casa, deveria estar lá dentro. Mas, como, se apenas a acompanhante morava lá? Depois de um tempo, a acompanhante “parece que enlouquecera com a convicção de que não havia fechadura ou cadeado que impedisse a entrada do inimigo que invadia sua casa todas as noites…” e acabou se enforcando, no minarete da torre da Casa da Colina.

Após seus convidados para a expedição fazerem alguns comentários, o Dr. Montague sintetizou o que pensa sobre a Casa da Colina: “o mal é a própria casa, eu acho. Aprisionou e destruiu as pessoas e suas vidas; é um lugar de malignidade contida.”

Mais tarde, deitada na cama, no quarto azul, Eleanor refletia sobre o dia que tinha passado e sobre os outros convidados. Cobriu a cabeça com o cobertor e deu uma risadinha. “Na cidade nunca dormia com a cabeça embaixo das cobertas; como mudei hoje, pensou.” As epifanias de Eleanor, de algum modo, me lembram das personagens de Clarice Lispector. Pelo menos, no início da narrativa. Depois de alguns dias na Casa da Colina, ela começou a demonstrar sinais de que estava sendo bastante afetada pela malignidade daquele lugar.  Mas a primeira noite na casa foi tranquila para todos.

No dia seguinte, eles começaram a perceber que as portas da casa não ficavam abertas. Mesmo que eles colocassem escoras, quando voltavam a olhar, as portas estavam fechadas e os objetos utilizados para que elas não se fechassem haviam voltado para o lugar que ocupavam antes de servirem como escoras. Eles queriam acreditar que era a Sra. Dudley, caseira e cozinheira, que fechava as portas, ou talvez dissessem isso na tentativa de manterem a racionalidade, o que ficou bastante complicado quando, durante o tour que fizeram pela casa, ao chegarem em um determinado ponto da residência, serem atingidos por um frio absurdo. O doutor disse que esse lugar parecia ser o coração da casa.

Na noite do segundo dia, Theodora e Eleanor acordaram com o barulho de batidas nas portas. Eleanor acordou porque Theodora a chamou, então foi para o quarto dela pelo acesso que tinha entre os quartos azul, o seu,  e o verde, o da outra convidada. As batidas persistiam por um minuto e paravam. Depois, recomeçavam. Parecia que, o que quer que fosse que estivesse batendo, ia, metodicamente, de porta em porta, desse modo, passando por todas as portas do corredor. Quando o barulho ficou ensurdecedor, o ar gelado entrou por debaixo da porta e Theodora e Eleanor começaram a tremer de frio. As maçanetas das portas começaram a ser giradas, e as mulheres confirmaram uma para a outra que as portas de ambos os quartos estavam trancados, pois Eleanor trancara a porta do quarto azul antes de ir se deitar, então, não havia como a coisa que girava maçanetas e caminhava pelos corredores entrar no quarto de Theodora por intermédio do outro quarto.

— Não pode entrar — disse Eleanor, frenética, e novamente fez-se silêncio, como se a casa ouvisse com atenção suas palavras, compreendendo, concordando cinicamente, contente em esperar. Ouviu-se uma risadinha fina, um golpe de ar pelo quarto, a risadinha louca crescendo, depois sussurrando, e Eleanor ouviu tudo subindo e descendo a espinha, uma risadinha maligna de triunfo passando por elas e rodeando a casa, e então ouviu o doutor e Luke chamando das escadas e, misericordiosamente, tudo terminou.

Quando o Dr. e Luke chegaram ao quarto e foram informados do que aconteceu, disseram que estavam fora da casa, procurando por algo, parecido com um cachorro, que havia passado perto do quarto do Dr, que acordara Luke para ajudá-lo a procurar pelo animal. Depois, ele disse: “— Quando Luke e eu fomos chamados lá fora e vocês duas ficaram presas aqui, não lhes parece — e sua voz estava muito calma —, não parece que a intenção foi, de alguma forma, nos separar?”

Parecia que a casa começara a agir, efetivamente, para separá-los. E o próximo passo foi começar a colocá-los uns contra os outros. Apareceu uma escrita em uma das paredes da casa com os seguintes dizeres: “AJUDE ELEANOR A VOLTAR PARA CASA”. Depois do susto inicial, Eleanor perguntou para Theodora se fora ela que escrevera aquilo, como uma brincadeira. Theo rebateu, dizendo que Eleanor sabia que nenhum dos quatro escrevera aquilo. Não satisfeita, ela fez a mesma pergunta para Luke. Então, Theodora disse que poderia ter sido a própria Eleanor que rabiscara aquelas palavras na parede, como um pedido de socorro. Ela ficou muito irritada com essa suposição.

Quando o quarto e as roupas de Theodora ficaram cheios de sangue, a tensão na casa aumentou. Theo começou a acusar Nellie/Nell, que é como chamava Eleanor, de ter feito isso, e, desde então, Eleanor se pegava imaginando coisas ruins sobre a artista; chegou, até, a imaginar sua morte. Quando Luke e o Dr. chegaram ao quarto de Theodora e viram todo o sangue, tiveram outra surpresa. Dessa vez, fora escrito, com sangue, no papel de parede do quarto de Theodora:  “AJUDEM ELEANOR A VOLTAR PARA CASA”.

(A partir daqui, há muitos spoilers. Caso não queira detalhes sobre o desfecho do livro, sugiro que você pule os próximos cinco parágrafos e vá direto para o último).

Eleanor parecia ser cada vez mais afetada pela casa. As coisas pioraram quando, quase uma semana depois que os quatro estavam lá, a Sra. Montague e seu amigo, Arthur, que dirigiu para ela, terem ido à Casa da Colina ajudarem na investigação do Doutor. Eles decidiram usar a prancheta, algo parecido com Ouija, uma forma de escrita automática utilizada para se comunicar com seres intangíveis. Embora o Dr. não fosse adepto da Prancheta, sua esposa o era, e insistiu em utilizá-la. Após terem realizado o procedimento na Biblioteca, a Sra. Montague e Arthur compartilharam os resultados com o resto do grupo. Arthur leu as perguntas que foram feitas ao suposto fantasma/espírito e a Sra. Montague leu as respostas. O que se manifestou por intermédio da prancheta disse ser Eleanor, Nellie, Nell e disse que queria ir para a casa, que queria a mãe e, quando interrogado sobre onde era sua casa, respondia: “perdida, perdida, perdida”.

Depois desse acontecimento, Eleanor começou a demonstrar sinais de que sua sanidade estava seriamente ameaçada pela casa. E isso garantiu o que foi, na minha opinião, o momento mais assustador de todo o livro. Ela começou a espionar os outros moradores da casa, e a agir como se não estivesse lá, se escondendo deles, enquanto os vigiava. Então, para o meu desespero, reencenou o que, antes, parecia apenas ter vivenciado: as batidas nas portas, o vai e vem pelo corredor, as risadas insanas, o girar das maçanetas dos quartos, enfim. E ela sentiu prazer em perceber que Theodora estava com medo. Isso sugere que Nellie estava, de certo modo, se tornando parte da casa, pois compartilhava de sua insanidade e sadismo. Mas também instaura a dúvida de que, talvez, de algum modo, ela estivesse envolvida da outra vez que as batidas incomodaram os moradores da casa. Nesse ponto, é possível lembrarmo-nos da quase imperceptível risada que ela deu, ao cobrir a cabeça, na primeira noite que passou na Casa da Colina. Se a risadinha debaixo do cobertor é um indício de que Eleanor já tinha sido afetada pela casa quando ainda pensava que estava tudo bem, não se pode ter certeza. Mas a sugestão de que isso possa ter acontecido é bastante assustadora.

Com isso em mente, começamos a questionar outras situações que, no primeiro momento, dávamos como certas. Antes dessa sugestão, eu acreditava piamente que,  da  primeira vez que as batidas na porta e as risadas ensandecidas aconteceram, Eleanor estivesse o tempo todo ao lado de Theodora. Mas então me lembrei do dia em que Eleanor pensou que segurava a mão de Theodora, muito forte, quando o quarto estava brutalmente frio e escuro. Nesse dia, enquanto isso acontecia, ela tentava falar, mas não conseguia, só balbuciava. Quando as coisas começaram a se normalizar, e ouviu Theodora, do outro lado do quarto, sem segurar em sua mão, chamando por ela, Eleanor disse: “Meu Deus… de quem era a mão que eu estava segurando?” (Isso é absurdamente assustador, mas confesso que eu teria ficado mais apavorada se não tivesse visto a série da Netflix antes, já que ela se utilizou dessa estratégia). Se a história é construída a partir da percepção de Eleanor sobre as situações, é possível que, da primeira vez que o arroubo de batidas nas portas dos quartos e as risadas insanas aconteceram, ela pensasse que estava ao lado de Theodora, o tempo todo, mas, na verdade, não estava? É possível que Theodora pensasse que Eleanor estava lá, o tempo todo, mas na verdade, não estava? Do mesmo modo que Eleanor segurou uma mão e assumiu que fosse a de Theodora, Theo poderia ter ficado no quarto com alguém e assumido que esse alguém fosse Eleanor.

Assustador, também, é o penúltimo ato de loucura protagonizado por Eleanor na casa, o que fez com que eu resgatasse na memória algo que o Dr. Montague disse em um dos primeiros dias que os quatro passaram na casa: “Nenhum fantasma em todas as histórias longas de fantasmas jamais machucou alguém fisicamente. Os únicos danos são causados pela própria vítima a si mesma.” Eleanor subiu na escada da torre, e colocou em risco não apenas a sua vida, mas também a de Luke, que subira para tirá-la de lá. No momento em que Eleanor foi em direção à torre, eu tive quase certeza de que ela, como a acompanhante da irmã mais velha, fosse se enforcar lá, o que não aconteceu. Confesso que o fato de eu ter visto a série da Netflix antes de ler o livro contribuiu para isso, mas as reações, os pensamentos que a torre causava em Eleanor ao longo do livro também me levaram a acreditar nisso. Depois do incidente da torre, a Sra. Montague ajeitou as coisas para que o Dr. Montague mandasse Eleanor de volta para a casa da irmã, pois ela estava colocando a vida de todos em risco.

Desse modo, penso, eles acreditavam que ajudariam-na a voltar para casa. Entretanto, Eleanor já estava nas garras da Casa da Colina que, como explicado pelo Dr. na primeira noite que passaram nessa residência, não gostava de deixar seus convidados partirem. É nesse ponto que compreendemos a importância da história que o Dr. contou da pessoa que, há 18 anos, tentara ir embora da Casa da Colina e morrera quando seu cavalo disparou e a imprensou contra a árvore, porque após o Dr. Montague tê-la mandado embora – mesmo que ela pedisse, por inúmeras vezes, para ficar – Eleanor, protagonizando o seu último ato de loucura, jogara, deliberadamente, o carro contra a árvore. Enquanto o fazia, ela se perguntava o porquê de estar fazendo aquilo, mas já era tarde para se obter qualquer resposta. Ela estava, de algum modo, voltando para casa: a Casa da Colina.

O livro termina como começou: a narrativa é pendular, isto é, volta ao ponto de partida: a descrição da Casa da Colina erguendo-se, solitária, e agasalhando a escuridão. A Casa, que existia há oitenta anos, ainda estava lá, onde provavelmente permaneceria por mais oitenta anos. Diferentemente do que se espera da maioria dos livros de terror, A Assombração da  Casa da Colina não nos assusta pela exploração do grotesco, de gritos e imagens aterradoras. O livro de Shirley Jackson ancora-se no terror psicológico, o terror em que predomina a sugestão, não a exposição. É como se a casa fosse a amplificação do inconsciente das pessoas que passam por ela, o que leva as pessoas a um estágio de desequilíbrio tão intenso que faz com que elas exibam todos os traços reprováveis de suas personalidades que, racionalmente, tentaram reprimir. O medo ao qual a Casa da Colina nos submete não é um medo gritado, é um medo sussurrado, balbuciado, quase inaudível, mas constante, o que faz com que fiquemos, sempre, no estado de espera. Sempre à espera do momento em que a casa aumentará o volume e, então, consumirá os seus visitantes.

Na escuridão da mente (Paul Tremblay)

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naescuridãodamenteVocê quer saber um segredo? Vai guardá-lo com cuidado e amor? Isso não acontecerá de maneira óbvia, mas você e eu não estamos sozinhos aqui. Esse trecho da canção My Head is Full of Ghosts, de Bad Religion, é uma das citações que abrem Na escuridão da mente, de Paul Tremblay, cujo título original, não por acaso, é A Head Full of Ghosts. Uma cabeça (mente?) cheia de fantasmas não parece algo tão incomum quando se trata de um livro de terror, mas na medida em que uma adolescente de quatorze anos começa a martelar a ideia de que há vozes em sua cabeça, o incômodo parece preencher a nossa mente a ponto de querermos, o mais rápido possível, desvendar o porquê de tudo isso. Mas Merry esperou. Por quinze anos, Meredith Barrett esperou para contar a sua história, para contar como a sua mente reconstruiu tudo o que acontecera quando ela tinha oito anos.

John e Sarah Barrett tinham duas filhas: Marjorie e Meredith, esta chamada por todos de Merry. Depois de dezenove anos trabalhando em uma fábrica, John ficara desempregado. Foi mais ou menos aí que as coisas começaram a desmoronar, mesmo que, à época, Merry ainda não tivesse percebido exatamente o que estava acontecendo. Ela tinha Marjorie, sua irmã, que criava e recriava histórias nas quais elas eram personagens, e isso a confortava e fazia com que ela se imaginasse como a irmã, no futuro. Mas Marjorie também começou a desmoronar, e foi quando as coisas começaram a ficar difíceis para Merry.

Marjorie estava começando a manifestar sinais do surto psicótico que a acometeria e, posteriormente, se elevaria à esquizofrenia, mas seu pai – que após ficar desempregado tinha retomado suas raízes católicas – não viu as coisas dessa maneira; ele começou a pensar que ela estivesse  possuída por um demônio. Linha de raciocínio que, no início do livro, é veementemente contestada por Sarah, sua esposa, que acreditava que a filha estivesse doente e precisasse de cuidados médicos, não de devaneios religiosos. Mas essa leitura  é-nos apresentada como uma interpretação tardia de Merry. Quando as coisas estavam estranhas, ela ainda não conseguia entender o que estava acontecendo, embora sentisse medo.

Para nós, leitores, o clima de falta de segurança, de medo e pavor se instaura quando Marjorie diz à irmã que entra em seu quarto toda noite e a observa enquanto ela dorme. “Na noite de ontem, apertei seu nariz até que sua boca pequena se abrisse para pegar ar.” A irmã mais nova tenta, de todas as maneiras que uma criança de oito anos é capaz, manter seu quarto seguro, mas a irmã mais velha sempre entra, e mexe com as coisas e com a cabeça de Merry, e isso acontece na mesma época em que a filha mais velha dos Barrett começa a mostrar claros sinais de que não está bem, falando coisas estranhas, vomitando do nada,  entre outros.

As informações sobre o real estado de Marjorie vão se desenhando aos poucos. Ela está se consultando com um psiquiatra, mas não parece estar melhorando e, mesmo contra o desejo de sua esposa, que esperava que o tratamento médico fizesse efeito, John começa a investir na ideia de que Padre Wanderly pudesse ajudá-los a lidar com a situação que, para o senhor Barrett, trata-se de possessão. Nesse contexto, engendrada pelo referido padre, aparece a oportunidade para tirá-los da situação financeira complicada em que  se encontravam: um reality show, chamado A Possessão, filmado na casa deles, contendo seis episódios, com o intuito de exibir, ao vivo (ou o mais próximo disso), o exorcismo de Marjorie.

O livro é narrado a partir de três perspectivas: duas correspondem ao presente e uma ao passado. Inicialmente, temos Meredith, no presente, revisitando sua casa de infância após quinze anos. Ela está acompanhada de Rachel, uma best-seller que estava escrevendo um livro não ficcional sobre a história da família Barret, e Merry será sua consultora criativa, isto é, vai lhe contar a história a partir do que sua memória guardou e recriou daqueles eventos. Em seguida, somos apresentados à Karen Brissette, uma blogueira apaixonada por histórias de terror que começou a escrever uma série de posts no blog sobre o programa que narrara a tragédia particular da família Barrett: A Possessão. Então somos colocados no contexto dos acontecimentos, que são narrados pela Merry com oito anos.  De certo modo, são narrados pela Meredith de 23 anos, mas com um estilo de contar que remonta às suas lembranças de oito anos.  No decorrer do texto, descobrimos que as três perspectivas narrativas são orquestradas por Meredith, que é a autora do blog de terror. As diversas vozes narrativas assumidas por Merry são análogas a uma de suas habilidades quando criança, a de imitar vozes.

Essa habilidade nos proporciona um dos momentos mais sinistros do livro. Marjorie já estava doente, a casa estava cheia de câmeras, para a gravação do programa de TV. Nesse dia, durante o jantar, Merry imitou vozes e foi congratulada por isso. Pouco depois, Marjorie teve um surto, no qual assumiu diversas vozes estranhas, vomitou, entre outros. Quando o surto estava quase passando:

Marjorie cantarolou a melodia novamente, mudando de tom e timbre tão rápida e abruptamente que era desorientador, e parecia que minhas orelhas iriam estourar. Ela rastejou pela sala de jantar, se movendo como um lagarto ou algo tão antigo quanto, em direção à entrada e as escadas.
Então ela disse de longe:
— Eu também sei imitar vozes, Merry.

Nesse momento, foi inevitável que eu me lembrasse de mais uma das citações que abrem o livro: “É tão agradável ficar neste quarto enorme e me rastejar como eu bem entender!” O trecho pertence ao livro O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, que é mencionado no decorrer da narrativa. E, mesmo quando não é diretamente mencionado, se faz presente na casa dos Barrett, cenário da história narrada. Um dos momentos mais tensos da narrativa quando, durante uma crise, Marjorie ameaça arrancar a língua da irmã, acontece no solário, cujo papel de parede é amarelo. Amarela, também, é a cor que Merry, já adulta, decidiu pintar a sua sala de estar.

O jogo com as cores ao longo da narrativa é bastante eficiente em delinear a articulação do enredo. O quarto de Merry, no apartamento em que ela vive já com vinte e três anos, tem as paredes azuis e, ao centro, uma cama com um edredom felpudo branco. Ele parece recriar a atmosfera do quarto que ela tivera na infância: uma casa de papelão, branca, que ficava no centro do seu quarto, todo pintado de azul, o que fazia com que ela sentisse que tinha um céu todo para si. A casa de papelão acaba por assumir um papel dúbio no decorrer da narrativa. Inicialmente, ela era o lugar em que Merry se sentia protegida. Pouco tempo depois, passou a ser o espaço em que coisas estranhas aconteciam e, por isso, na metade do livro, acabou sendo colocada no porão da casa dos Barrett.

Dúbia, também, é a simbologia da cor branca. Às vezes, ela transmite paz e está presente em diversos ritos de passagem. Entretanto, ela também é a cor dos lençóis que usamos quando queremos nos fantasiar de fantasmas. Para o pintor Kandinsky, o branco produz sobre nossa alma o mesmo efeito do silêncio absoluto. E se levarmos em consideração a simbologia conforme a qual a morte precede a vida, o que conceberia o nascimento como um renascimento, o branco é, primitivamente, a cor da morte. O branco, como não cor, também é aquilo que se desfaz, torna-se transparente quando misturado a outras cores, como o sal (ou qualquer outra substância) que se coloca em um molho vermelho; como a palidez que tomou conta do rosto de Marjorie durante boa parte da narrativa; como o macarrão de Merry que, diferentemente do macarrão dos outros três membros da família, não continha molho vermelho, que ela detestava, apenas queijo e manteiga; como o espaço da memória que não conseguimos preencher; como as lacunas constituintes da história de Merry e sua família, enfim.

A exemplo do amarelo, do azul e do branco, o verde aparece em diversas situações descritas em Na escuridão da mente. Geralmente, as coisas ruins que acontecem com os Barrett, de certo modo, sempre se relacionam com a cor verde, que está presente desde os primeiros bilhetes que Marjorie envia para a irmã, passando pela história de todas as coisas crescendo pela cidade,  o vômito de Marjorie, durante as crises,  e tem seu ponto culminante como a cor da panela do molho de macarrão do último jantar da família Barrett na casa em que Merry passou sua infância. Essa cor volta, emblematicamente, como a cor que Merry, já adulta, pintou sua cozinha. Isso assume um teor simbólico quando, quase no fim do livro, descobrimos que na cozinha da antiga casa da família Barrett  aconteceu mais do que se poderia imaginar no início do livro.

(Os próximos cinco parágrafos – conto a citação como parágrafo também – contêm spoilers sobre o desfecho do livro. Caso você, como eu, não goste de spoilers, pule-os).

No dia em que o Padre Wanderly disse que precisaria do auxílio de Merry para ajudar na melhora de Marjorie, ela estava vestindo um suéter vermelho e, quando o padre lhe falou que parecia aconchegante, ela disse: “não é aconchegante. Estou usando porque sou uma repórter”. Quinze anos depois, quase no desfecho do livro, quando Merry conta à Rachel como sua irmã a manipulou de modo que ela colocasse veneno no molho, vermelho, do macarrão, o que acabou fazendo com que seus pais e sua irmã morressem, ela está usando um sobretudo vermelho: “Estou vestindo um suéter preto, jeans pretos, botas pretas e meu casaco preferido; um sobretudo vermelho espalhafatoso que não é quente o suficiente.” E, depois que ela contou tudo, a cafeteria em que estava com a escritora, ficou muito fria, quase congelando, do mesmo jeito que, supostamente, ficara o quarto de Marjorie no dia do exorcismo. Nesse ponto, é impossível não imaginar que é como se, ao fundo, estivesse tocando um trecho da canção de Bad Religion que dá nome ao livro: “você e eu não estamos sozinhos aqui”.

Todas as vezes em que Merry se relaciona com a cor vermelha, ela parece assumir outra persona ou, de algum modo, estar diante de uma perda ou de um rito de passagem. No início do livro,  ela conta que, quando criança, amarrava fio dental vermelho nos dentes frouxos e o deixava lá até que eles eles caíssem. No passado, quando usou o suéter vermelho, ela estava fingindo que era uma repórter, usava até um caderninho que ganhara de um dos membros da equipe do reality show sobre sua família. Em sua casa, já adulta, o quarto vermelho era o quarto de mídia, onde ela tinha tudo relacionado ao mundo do terror, ou seja, de onde ela tirou a maioria das referências que citou, como Karen Brissette, no blog:

O Exorcista e suas quatro sequências e prequelas; O Exorcismo de Emily Rose; O Último Exorcismo; The Devil Inside Me; Invocação do Mal; Constantine; O Ritual; REC 2Horror em Amityville, as duas versões; Atividade Paranormal e suas sequências; A Morte do Demônio I e II; Exorcismo. — Rapidamente, explico como outros títulos como Sessão 9A Casa de Noite Eterna, A Mansão Macabra e O Iluminado se encaixam também nessa subseção. Sobre livros, comento sobre outros títulos nobres além do óbvio escrito por William Peter Blatty. Incluem Come Closer, de Sara Gran; Pandemonium, de Daryl Gregory; O Bebê de Rosemary, de Ira Levin. Aponto alguns títulos de não ficção, como The Exorcist: Studies in the Horror Film; American Exorcism: Expelling Demons in the Land of Plenty; Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo; e até mesmo o risivelmente ruim Pigs in the Parlor: The Practical Guide to Deliverance.

Será que quando misturou o cianeto de potássio no molho, vermelho, do macarrão, Merry o fez por obediência, cega, à irmã – o que parece ser verdade – ou por que já estava sob a influência do que quer que fosse que estivesse na mente de sua irmã? Nesse ponto, as interpretações extrapolam o âmbito do racional – e eu já estou ignorando as evidências de que a filha mais velha dos Barrett sofresse de esquizofrenia -, afinal,  trata-se de um livro de terror, mas e se o demônio tivesse abandonado Marjorie e se alojado na mente de Merry? Quando está apresentando o seu apartamento à Rachel, em um determinado momento, Merry diz que ele é um lugar legal para repousar seus ossos cansados.  Essa afirmação é prontamente rebatida por Rachel, que diz: “Você é jovem demais para ter ossos cansados”, o que é verdade, pois ela tem apenas vinte e três anos. Mas e se essa fala não for inteiramente dela? E se a fala for de algum demônio antigo, mais especificamente, do demônio que supostamente estivera no corpo de sua irmã?

E se isto, o demônio ter abandonado o corpo de Marjorie e se alojado no corpo de Merry, tiver acontecido antes de Marjorie morrer? Quando vai falar sobre o último episódio de A Possessão, Karen Brissette – que é a Merry escrevendo em um blog a partir da perspectiva de uma adolescente, imitando a voz narrativa de uma adolescente – ao dissecar a cena do corrimão, fala sobre um momento em que “não há som e não conseguimos ver rosto nenhum. Meredith poderia ser Marjorie e Marjorie poderia ser Meredith”. Seria um prenúncio de que Merry se tornaria a irmã, mas não pelas coisas que faziam com que ela a admirasse, mas por ter sido possuída pelo demônio que outrora estivera em Marjorie? O leitor fica tão concentrado em descobrir o que estava acontecendo com Marjorie que, quando é informado de que a história não é apenas sobre um exorcismo, mas também sobre o envenenamento que vitimou três dos quatro membros da família Barrett, se dá conta de que deixou de observar diversas pistas. Quando interrogada por Rachel se  era Karen, isto é, se ela acreditava em tudo creditado à Karen ou se Karen era uma personagem, Merry respondeu: “Karen é apenas um pseudônimo, nada mais. Não tenho interesse algum em escrever ficção. Sim, acredito em tudo o que escrevi, senão não teria escrito.”

No primeiro capítulo do livro, antes que Merry começasse a contar a história de sua família, além de dizer que a história não era sua, afinal envolvia mais três pessoas, ela disse que não confiava na história por inteiro. Ela ressaltou que suas lembranças misturaram-se aos pesadelos, às coisas contadas por tios e avós, às lendas urbanas, aos elementos da cultura POP, às mentiras propagadas nas plataformas digitais, enfim. Para ela, sua história pessoal é literal e figuradamente assombrada por forças externas e é quase tão terrível quanto a que de fato aconteceu.

Para ser sincera, e deixando de lado todas as influências externas, existem algumas partes das quais me lembro com tantos detalhes horríveis que temo me perder no labirinto das lembranças. Há outras que permanecem confusas e misteriosas como se fossem a mente de outra pessoa e temo que, em minha cabeça, eu tenha provavelmente misturado e comprimido as linhas do tempo e os acontecimentos.

Na última página do livro, parecemos compreender o que ela quis dizer. A história da família Barrett contém muitas lacunas, subidas e descidas. Ela é contada mais por sugestões e suposições do que por afirmações. Resta ao leitor tentar articular o que se sabe com o que se imagina para, desse modo, preencher algumas das lacunas. Na escuridão da mente é um exímio livro de terror, feito para fãs do gênero, e, como tal, apresenta alegorias e elabora críticas sobre diversas esferas da sociedade sem, em momento algum, perder a linha narrativa que sobe e desce a escada da antiga casa dos Barrett, que lembra as teclas de um piano. Nesse cenário, a cada passo em um lance de escada, cuja simbologia remete tanto à ideia de ascensão quanto à ideia de queda – aludindo às relações entre o céu e a terra – toca-se uma triste e assustadora melodia.

Qual é a sua profissão? (Gillian Flynn)

Publicado em

qual é a sua profissãoEu não parei de bater punhetas porque não era boa nisso. Parei de bater punhetas porque era a melhor. (p.65).

Não é todo o mundo que inicia um texto com uma frase assim  e tem a certeza de que, depois dela, o leitor não abandonará o texto. Não é todo o mundo que pode colocar uma frase dessas como início de uma novela e fazer com que o resto dê certo. Não é todo o mundo, é a Gillian Flynn, autora que conheci há alguns anos, quando li o maravilhoso Garota Exemplar. Desde então, procuro devorar toda e qualquer coisa escrita por ela. Quase toda. Sempre deixo algo “por ler” reservado para os os momentos em que a sensação de “não tenho nada para ler” decidir me atingir.

Qual é a sua profissão? foi publicado originalmente em uma coletânea, organizada por George R.R. Martin e Gardner Dozois, que, no Brasil, saiu com o título: O Príncipe de Westeros e outras histórias. Mas eu fiquei sabendo da existência da novela por causa deste post. (Obrigada, Anica!).

A novela, narrada em primeira pessoa, tem início com uma breve recapitulação da história da narradora, que cresceu pedindo esmolas e acabou por trabalhar batendo punheta para os mais diversos homens, vindos dos mais inusitados lugares, nos fundos de um lugar chamado “Palmas Espirituais”.  No tempo em que a novela se inicia, a narradora trabalha como vidente, pois adquirira LER, o que a impossibilitara de exercer o trabalho anterior com eficiência. Entretanto, ela ainda atende alguns dos seus clientes preferidos; um deles, com o qual discutia livros de terror.

Foi por causa da  profissão de vidente que ela conheceu Susan Burke, personagem responsável por transportar o leitor do ambiente cômico: local de trabalho de uma vidente que bate punheta nas horas vagas,  para o cenário de um filme de terror: uma casa antiga e que, segundo a dona, era mal-assombrada. Susan procurou a vidente por acreditar que a casa em que morava com o filho e o enteado estava influenciando, negativamente, o comportamento do enteado. Miles, de 15 anos, tinha um comportamento estranho que, segundo ela, se intensificou após a família ter se mudado para a mansão Carterhook.  O nome da mansão é bastante sugestivo. O “hook” nos remete à sonoridade de “look” que, por sua vez, nos conduz ao “Hotel Overlook”, de O iluminado, um dos clássicos do terror.

Ao chegar à casa de Susan, a narradora –  consciente de que era uma fraude, mas ávida por estender seu mercado de trabalho para o campo imobiliário –  que já havia arquitetado um plano para fazer uma “purificação” da mansão em doze meses, é surpreendida pela decoração vitoriana da casa.

Observei a casa. Ela me observou de volta, através de janelas longas e malignas, tão altas que uma criança poderia ficar de pé no peitoril. E havia uma. Vi o comprimento de seu corpo magro: calça cinza, suéter preto, gravata marrom perfeitamente amarrada ao pescoço. Um emaranhado de cabelos escuros cobrindo os olhos. Em seguida, um borrão súbito, ele saltou e desapareceu por trás das pesadas cortinas de brocado. (p.73)

Pode-se fazer uma analogia entre a pessoa que observava a narradora da janela – Miles – e o texto ficcional. A pessoa que aparece na janela é o texto visível, é o que impulsiona o leitor a se embrenhar texto adentro. Ele só faz o movimento de entrar no texto porque a pessoa desce da janela e desaparece. Fazer com que o personagem desça da janela é uma estratégia narrativa que não apenas instiga o leitor a perseguir a suposta pessoa como a colocar em cheque a sua capacidade de observação (realmente tinha alguém na janela?).  A partir desse momento, o leitor sente que precisa entrar na casa-texto.

A casa era composta por uma decoração mista: vitoriana por fora, moderna por dentro. Quando o leitor acompanha a narradora e entra na casa, ou seja, no texto, espera ver elementos que corroborem a caracterização externa, mas não é o que vê. Dentro da casa, a arquitetura moderna tenta extirpar os principais traços vitorianos da mansão.

A constituição da novela é perpassada pelo duplo, como a própria decoração da mansão sugere. É notável, e paradoxal, a descrença da vidente em coisas sobrenaturais e a crença de Susan no fato de que a casa tinha alguma coisa que afetava o comportamento do enteado. A vidente acreditava que o comportamento agressivo e imprudente de Miles nada mais era do que a manifestação das agruras por que passam os adolescentes. Já a dona da casa acreditava que o enteado estava determinado a matá-la e também a matar o irmão mais novo, a quem já havia ameaçado.

A novela começa a engrenar, efetivamente, quando a narradora, por intermédio de uma pesquisa na internet, descobre que a mansão Carterhook antes de ser a residência da família Burke, fora palco de acontecimentos sobrenaturais que culminaram com o sangrento extermínio de uma família. Então acontece a suspensão da descrença, o que é essencial para que todas as pistas dadas anteriormente comecem, efetivamente, a fazer sentido. Entre as pistas, pode-se destacar a recorrência do uso de verbos no Imperativo, tão característicos de livros e filmes de terror. Sempre aparecem personagens para dizer que as pessoas não devem ou devem fazer algo, e se os avisos são ignorados, as consequências costumam ser desastrosas.

— Eu espero que você saia e não volte. Para o seu bem. — Ele sorriu para nós duas. — Este é um assunto de família. Não concorda, mamãe? (p.76 – grifo meu).

Verbos no Imperativo denotam ordens, mas também avisos. É como se a exortação fosse uma estratégia textual de que o autor dispõe para dizer ao personagem: Cuidado, você é personagem de um Thriller e vai se dar mal. E o leitor de Thriller espera, ansiosamente, pelo momento em que os protagonistas ignorarão os avisos, porque essa transgressão é indispensável para o desenrolar da história.

A partir do momento em que a narradora começa a acreditar que a casa está mal-assombrada e decide sair correndo daquele lugar, a novela tem a sua primeira reviravolta e, quando começa-se a digeri-la, tem outra. O texto faz o seguinte movimento: quando o leitor acredita que a autora conduz a narrativa em uma direção, ela a desvia para outra. E se ele acredita que não há a possibilidade de uma história que começa com uma mulher batendo punheta e passa para uma mansão mal-assombrada funcionar, sugiro que ele acredite em Gillian Flynn. Eu acredito.

 

 

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