Brasil Ópera-Bufa (Luís Fernando Neis Blaschke)

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É consenso que não se deve julgar o livro pela capa. Entretanto, é inegável que é por ela que a leitura de um livro começa. Com isso em mente, dentre as muitas coisas que se pode depreender da capa de Brasil Ópera-Bufa, impactou-me a fonte com a qual o título do livro e o nome do autor foram grafados.

O tom escarnecedor, que, por vezes, deixa transparecer a melancolia que perpassa os poemas de Neis Blaschke, anuncia-se nestas letras, que lembram os moldes alfabéticos utilizados na criação das capas dos trabalhos escolares, quando eu cursava o Ensino Fundamental. Na folha de papel almaço, com o auxílio da régua alfabética, escrevia-se “Trabalho de” acrescido do nome da disciplina correspondente. As letras da capa ficavam em perfeita simetria.

A métrica, ditada pelo uso impecável de formas fixas, também é a fonte com a qual se inscreve na Literatura Contemporânea Brasileira esta ópera de escárnio e maldizer, sob o riso estridentemente contido de Luís Fernando Neis Blaschke e os borrões causados pela tinta do pincel que ficou no normógrafo.

Quem avisa, amigo é; ou não. O aviso poético que abre o livro — que saiu em 2021, pela Editora Patuá — é o mea-culpa mais irônico do mundo, no qual a voz poética se coloca como ré e juíza, e, depois, como anônima. Em seguida, no “Prólogo”, apresenta-se, en passant, e por meio de hiperônimos, as duas grandes vozes em disputa na ópera que se segue. Vozes estas mediadas e instigadas — espinafradas — pelo poeta que, enquanto “dá de ombros”, espia e expia as desventuras encenadas no Brasil.

Não se enganem, a ópera começou antes do primeiro ato, embora muito tarde tenhamos notado tal fato, porque estávamos muito preocupados em desvendar os mistérios da saudação à mandioca — numa terra que não tem mais palmeiras nem sabiá — enquanto ouvíamos Biquíni e Cavadão, e tentávamos estocar vento.

Em Brasil Ópera-Bufa satiriza-se o ufanismo desde a saudação à mandioca — que funciona, também, como uma jocosa saudação do poeta ao leitor. E essa sátira percorre, como massa do vento não estocado, todo o livro, no qual cada declaração de amor pelo país faz com que este deseje, desesperadamente, ser odiado.

Uma das citações que abrem a ópera está no livro de João, 8:32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Não parece, mas trata-se de um aviso ao leitor, tecido com as letras da facécia: desta Ópera, não tente conhecer toda a verdade, porque ela não se mostra em sua inteireza; antes, mostra-se fracionada, mutilada, inventada.

Eu poderia dizer que, em Brasil Ópera-Bufa, Luís Fernando Neis Blaschke faz um retrato possível do Brasil dos últimos anos, contudo isso não faria justiça ao primoroso trabalho do poeta. Ele faz o único retrato possível do Brasil dos últimos anos.

Eu também poderia me debruçar sobre cada um dos poemas desta ópera, mas seria de bom tom? Não. O ideal é que as pessoas queiram apreciar a Ópera sem que, para isso, sejam necessários conhecimentos preambulares sobre as tecnicidades inerentes à sua constituição. Não se preocupem, ter conhecimentos prévios sobre o assunto não atrapalha, em nada, o processo de fruição estética do livro.

Uma prova disso encontra-se no magnífico Soneto Inglês denominado “Pesadelo presidencial”. Quando chegamos ao dístico (couplet), impossível não gargalharmos com a genialidade demonstrada pelo poeta ao utilizar o vocábulo “inocenta” em “Eu juro-lhes por Deus, sou inocenta!”. E essa gargalhada encontrou terreno fértil para florescer por causa da querela que se instaurou desde que a Dilma, no seu primeiro mandato, optou por ser chamada de “Presidenta”.

Nesse caso, a rima extrapola os limites do soneto — acrescenta/inocenta — e desagua no contexto discursivo em que gramáticos tradicionais, linguistas e representantes de Movimentos Sociais se digladiaram durante muito tempo. Todavia, os pormenores do (in)frutífero alvoroço em torno da questão mencionada o poeta deixou para os atores que ocuparam o palco. Ao artífice, interessou fazer saber; abrir a ferida para que nós, leitores, pudéssemos observá-la e tirarmos nossas próprias (in)conclusões sobre o assunto satirizado.

Outro exemplo de que os conhecimentos prévios acerca do imbróglio em que se transformou o cenário político brasileiro contribuem para que possamos fazer uma leitura mais profícua de Brasil Ópera-Bufa encontra-se no poema “Profissão de fé”. Para além da referência óbvia ao seu mestre, Olavo Bilac, Neis Blaschke, no poema em questão, faz um escrutínio de alguns dos pressupostos que sustentam o comportamento, quase religioso, que faz com que militantes — à Direita e à Esquerda — apeguem-se a uma ideia e não consigam considerar a possibilidade de estarem equivocados.

Na ânsia pelo excesso do excesso, pessoas com inclinações políticas aqui satirizadas acabam por, de algum modo, viverem num estado de êxtase — que vai da idolatria cega ao Lula às histórias para gado dormir, prescritas, sob medida, por Olavo de Carvalho, para a defesa de Bolsonaro — tão profundo que incorrem em um dos perigos do elemento letárgico, conforme Nietzsche: a ruptura com a realidade.

É no perscrutar dessa ruptura com a realidade que, seja em Sonetos Ingleses ou Petrarquianos, Trovas ou demais formas fixas que figuram no livro, nada passa pelo buraco da agulha satírica com que Luís Fernando Neis Blaschke — por meio de uma linguagem que remonta a uma tradição de poetas satíricos, dentre os quais destaca-se Gregório de Matos — costura esta colcha de retalhos chamada Brasil.

“Bettina, profissão: herdeira”, entalou-se com as notas do seu milhão; a IURD e a Igreja Católica nem se aproximaram da agulha, que foi ocultada por seus respectivos egos; a família Bolsonaro foi ridicularizada a ponto de não saber o que vem a ser uma agulha; Sérgio Moro amassou a agulha com sua toga burlesca.

Maldita agulha que nos contaminou com o Comunavírus! Vírus este que deve ser o responsável pelo meu poema preferido do livro ser “Fúria e tradição”. A mordacidade desse soneto é, ao mesmo tempo, bela e assustadora. E, confesso, fiquei conscientemente perdida na imensidão de reflexões que cabem nos versos: “Melhor seria se vestisse burca/ Melhor ainda se nem fosse viva…”.

Observa-se, no poema em questão, como em todos os poemas que compõem Brasil Ópera-Bufa, o brilhantismo com que o trabalho desenvolvido pelo poeta nos induz ao riso crítico. Assim, no descompasso desta desencantada ópera chamada Brasil, Luís Fernando Neis Blaschke, com o seu livro de estreia, nas pegadas de Freud, faz valer a máxima de que “brincando pode-se dizer tudo, até a verdade”.

Meu ano de descanso e relaxamento (Ottessa Moshfegh)

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Resultado de imagem para meu ano de descanso e relaxamentoCansada de não saber o que fazer com sentimentos profundos, a protagonista de Meu ano de descanso e relaxamento, livro de Ottessa Moshfegh, traduzido por Juliana Cunha, decide tirar um ano sabático do mundo. Mas ela não faz isso indo para um retiro espiritual ou algo do tipo, ela o faz decidindo dormir o tempo inteiro para, desse modo, ter de lidar apenas com coisas superficiais, que não lhe causariam raiva, ódio ou quaisquer emoções intensas. Para isso, ela toma remédios fortes para dormir, que consegue com uma psiquiatra que, claramente, precisa de uma intervenção.

Nas horas que estava acordada, eu praticamente assistia filmes. Não aguentava ver TV. Especialmente no começo, a TV mexia demais comigo, eu ficava compulsiva com o controle remoto, clicando em todos os botões, ridicularizando tudo e me enervando. Não conseguia lidar com aquilo. As únicas notícias que li foram as manchetes sensacionalistas dos jornais locais expostos no bar. (p. 11).

Embora ela comece a conseguir os remédios por mentir à psiquiatra, dizendo que não conseguia dormir, já na primeira consulta fica bem claro que a médica não tinha estabilidade mental para cuidar da saúde de ninguém. Como é reiterado, ao longo do livro, a doutora preocupava-se com o pagamento da consulta, mas não conseguia se lembrar de algo que a protagonista já havia mencionado em outras ocasiões: que era órfã; seu pai morrera de câncer, e sua mãe por ter misturado remédios com álcool.

No primeiro momento, é impossível não julgar a escolha da protagonista de dormir por um ano como ato de uma mulher privilegiada, que se encaixa nos padrões de beleza, e que seria uma pessoa cuja profissão fosse ser bonita. Afinal, estamos falando de uma mulher que, como a Charlize Theron, fica bonita de qualquer jeito. Entretanto, antes da metade do livro, é possível perceber que a escolha de hibernar da protagonista foi o jeito que ela encontrou para lidar com uma depressão profunda. Paradoxalmente, ao escolher a superficialidade, ela ficou imersa em um sono profundo. Pelo menos por um tempo.

Não consigo reconhecer nada que justifique minha decisão de hibernar. No começo, eu só queria uns tranquilizantes para abafar meus pensamentos e juízos, já que o bombardeio constante tornava difícil a tarefa de não odiar a tudo e a todos. Achava que a vida seria mais tolerável se meu cérebro demorasse um pouco mais para condenar o mundo ao meu redor. (p. 22).

Entre um remédio e outro, ela acordava para ir ao bar perto de sua casa, comprar dois cafés com creme, e voltar. Enquanto estava acordada, assistia aos filmes dos anos oitenta – especialmente os que contavam com a presença de Whoopi Goldberg -, que colecionava, e, depois, bebia mais remédios para voltar a dormir. A única pessoa, além da psiquiatra, com a qual ainda mantinha contato frequente era  Reva, sua melhor amiga, cuja personalidade resumia tudo de superficial. Por não ter sido criada no luxo, Reva fazia de tudo para se encaixar no mundo dos bem-favorecidos economicamente.

Com esse propósito em mente, ela acabava por se tornar a caricatura da superficialidade. Nas palavras da narradora: “ironicamente, seu desejo de ser elegante sempre a impediu de ser elegante. ‘Estudar estilo não é o mesmo que ter estilo’.” (p. 16).  Não é possível dizer, ao certo, o que mantinha a amizade entre as duas. Há momentos em que fica claro que elas se suportavam, e nada mais do que isso. Contudo, em alguns momentos parecia que, de um jeito torto, elas realmente se importavam uma com a outra.

A protagonista parece ter fechado os olhos para que sua mente pudesse visualizar todo o cenário que não conseguia absorver enquanto estava acordada. Sob um nevoeiro de amargura, dor e raiva, ela nos apresenta o mundo à sua volta. Apresenta-nos o lugar em que trabalhava, uma galeria de arte. Apresenta sua época na faculdade, ela é formada em História da Arte pela Universidade de Colúmbia. Apresenta-nos, também, Trevor, o cara com quem mantém um relacionamento horrível desde a época da faculdade, mas do qual não consegue se separar definitivamente. Ele é o que poderíamos chamar de “boy lixo”. Egoísta em todos os aspectos.

Ao apresentar o cenário em que habita e as pessoas com as quais coexiste, a protagonista destila desprezo. Trevor é desprezível? É. Mas mesmo sabendo disso, a narradora-personagem mantém um relacionamento doentio com ele. Reva é invasiva e, por vezes, superficial? É. Mas a protagonista continua mantendo-a em sua vida porque precisa ouvi-la falar aleatoriedades para julgá-la internamente. Os pais da protagonista foram distantes, e não sabiam demonstrar amor? Sim, e ela absorveu isso. Essa aparente apatia por tudo e todos. Inclusive, ela toma remédios e ingere álcool tal qual sua mãe, o que significa que, de certo modo, ela está repetindo um padrão.

A protagonista de Meu ano de descanso e relaxamento, intencionalmente não nomeada, o que facilita a identificação do leitor com ela,  fez com que eu me lembrasse desta máxima de Freud: “Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. O aparente desprezo com o qual ela vê o mundo, aos poucos revela o desprezo que ela tem por si. Embora, vez ou outra, desponte um comentário narcísico, como “continuo bonita”, mesmo que esteja dormindo o tempo todo, sem tomar sol e se alimentando mal, a protagonista está em um oceano de infelicidade. E, aqui, eu consigo perceber, também, que o incômodo que senti em alguns momentos, é por eu me identificar com o jeito debochado de ver o mundo que a protagonista adotou. Quando estamos feridos, ficamos afiados para ferir. Quando estamos infelizes, tudo o mais parece infeliz, desinteressante, incolor.

E nada parece passar pelo senso crítico da protagonista. Ela tece comentários mordazes sobre tudo e todos, e eu me vi soltar um sorriso de satisfação quando li um dos seus comentários sobre os jovens que ela conheceu quando estudava História da Arte e com os quais acabava tendo de conviver por causa de sua profissão. A opinião dela sobre os nerds hipsters vai ao encontro da minha. Eu não sei se isso quer dizer que tenho bom senso ou que a minha saúde mental está pedindo socorro. Façam suas apostas!

Eu os escutava falando merda sobre arte. Eles se ressentiam do sucesso alheio, queriam ser adorados, influentes, celebrados, por seu gênio, achavam que mereciam ser alvo de admiração. A verdade, no entanto, é que mal conseguiam encarar o próprio reflexo no espelho. Todos na base do Rivotril, é o meu palpite. Esse tipinho se concentrava especialmente no Brooklyn, outra razão pela qual eu estava feliz em morar no Upper East Side. Lá ninguém ouvia Moldy Peaches. Lá ninguém dava a mínima para “ironia” ou Dogma 95 ou Klaus Kinski. (p. 34-35).

Essas observações ácidas acabam ficando engraçadas por serem feitas por uma pessoa que decidiu dormir por um ano porque não está aguentando mais lidar com os pensamentos excruciantes. Especialmente o comentário sobre o Rivotril, já que vem de uma pessoa que toma um coquetel de remédios tarja preta para não ficar acordada. É como se ela quisesse imobilizar sua mente, acalmá-la. Analogamente à capa do livro, que exibe uma mulher dormindo com a metade do corpo dentro de uma cápsula de remédio – ou do tempo? -, a protagonista parece querer encapsular o seu cérebro, por um ano, para, então, com ele descansado, voltar a viver.

Mas, depois de um tempo, os remédios não fazem mais o efeito desejado. Enquanto tenta, desesperadamente, voltar a dormir, ela acaba confrontando o passado e, sob a penumbra do isolamento, lidando com a dor. Isso até encontrar uma solução para voltar a dormir e terminar o seu ano sabático. Para demarcar a passagem de tempo durante seu ano de descanso e relaxamento, a narradora parece emular a escrita em diários, atentando-se aos meses dos registros e, claro, respeitando os espaços de “apagões” ocasionados pelos remédios.

Sugestivamente, enquanto hiberna, a protagonista de Meu ano de descanso e relaxamento, de Otessa Moshfegh, passa boa parte do tempo no  sofá, o que nos remete a um divã. É como se o leitor estivesse no papel de psicoterapeuta, porque as construções que ela vai fazendo, ao longo do livro, parecem ser fruto de elaborações que se poderia fazer em uma análise. É importante observar que o sofá ficava bem em frente ao seu televisor, no qual ela via filmes antigos. Nesse ambiente de filmes super coloridos, que contrastam com a falta de cor da vida da protagonista, e delírios causados pelos remédios que ela tomava, poderia figurativamente o leitor ocupar o lugar de um terapeuta que sai de dentro de uma TV?

(A partir daqui, falarei um pouco sobre o desfecho do livro. Caso não goste de spoilers ou não se ache preparado (a) para ler comentários sobre os desdobramentos da depressão, sugiro que não leia os parágrafos a seguir).

Embora o final de Meu ano de descanso e relaxamento seja propositalmente ambíguo, fica mais forte para mim a versão de que a fantasia se sobrepõe à realidade. Para explicar como eu acredito que isso acontece, vou recorrer a algumas teorias de Freud. O Pai da Psicanálise, ao  reler a sua teoria da pulsão, pensou o seguinte: inicialmente, ao formular essa teoria, ele partia do princípio do prazer. Entretanto, se esse princípio era o motor base do funcionamento psíquico, seria estranho que as pessoas retornassem às situações de suas vidas, em sonhos ou em atos, que fossem desagradáveis. Diante disso, Freud começou a especular que toda pulsão visa ao restabelecimento de um estado anterior que o sujeito foi obrigado a abandonar.

Para retomar a noção de prazer e desprazer, este, para Freud, é o excesso de estímulo. E o prazer é a descarga, a “baixa” do estímulo. Se o prazer está ligado à descarga do estímulo, Freud acredita que a pulsão de morte seja uma força orgânica e biológica que visa à redução do desprazer, ou seja, do estímulo, da tensão do corpo no psiquismo. Sendo assim, o objetivo maior da pulsão de morte é a redução dessa tensão até que se atinja o ponto zero, o que só pode ser obtido a partir da recondução do ser ao estado inorgânico, ou seja,  à morte.

Mas o organismo quer morrer do seu jeito, sem  intervenção de drogas, suicídio, entre outras formas. O organismo quer retornar aos estágios passados, por meio de atividades que não foram prazerosas, não por querer voltar ao trauma, mas por querer voltar a antes desse desprazer, ao ponto zero de tensão. Como o organismo precisa morrer à sua maneira, é necessário que tenha o mínimo de energia para funcionar, e a pulsão de vida trabalha nesse sentido. Por isso, as pulsões de necessidades básicas estão ligadas a isso. A pulsão de vida procura manter o sujeito vivo por um pouco mais de tempo para que o organismo possa, à sua maneira, retornar ao estado da não organicidade. Contudo, tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte, em última instância, têm como objetivo voltar ao ponto zero da tensão.

Com isso em mente, acredito que, no fim do livro, a protagonista fez a opção por continuar viva para fantasiar os jeitos mais criativos de morrer sem precisar estar morta. Isto é, mesmo que não consiga mais desfrutar dos sabores da vida, ela espera que o seu organismo cumpra o papel final de, um dia, voltar ao estado anterior ao sofrimento.

No início do livro, ela disse que estava se sentindo tão mal que não aguentava ver TV, ficava compulsiva com o controle remoto, clicando em todos os botões, ridicularizando tudo e todos. Depois, ela se fixava em filmes antigos, porque a ficção era a única coisa que ainda fazia sentido para ela. No final do livro, quando via, repetidamente, a cena do onze de setembro, com a mulher (Reva, talvez) pulando, ela estava compulsiva novamente. E a compulsão é um atributo da pulsão, da ideia de retornar à situação de sofrimento, de dor, não para permanecer nela, mas para tentar voltar ao período que a antecede, ao período de uma idealizada felicidade.

No início do livro, ela não aguentava a realidade; no fim do livro, ela queria um excesso de realidade, mas ainda era uma realidade filtrada pela TV, ainda era uma realidade da qual ela pudesse estar um pouco distante. Ela transferiu a “adoração pela Whoopi Goldberg” para a “adoração por uma mulher que pôs fim à vida e, por isso, se tornou sua nova heroína”. Acho que, embora os sintomas tenham se metamorfoseado, a depressão dela ainda estava lá, depois do “despertar”, saltando da pulsão de vida para a pulsão de morte, como fez durante todo o livro.

Nessa perspectiva, aquele final também pode encenar a relação entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, estabelecendo um contraponto: “olha, eu dormi o ano inteiro, mas estou viva, e aquela mulher estava bem acordada quando escolheu não viver. Ambas são escolhas válidas, embora questionáveis.” Nesse campo de significação, a mulher que se jogou do oitavo andar da Torre Norte pode ser entendida como uma metáfora para a pulsão de morte, e a narradora, que despertou do seu ano de descanso e relaxamento, como uma metáfora para a pulsão de vida. Aqui, vale mencionar que tanto “descanso” quanto “relaxamento” têm, como sinônimo, a palavra repouso, ou seja, o mínimo de energia necessário para esperar que o organismo se encarregue de atingir o ponto zero de tensão.

Cabe ressaltar uma coisa que acho peculiar: o tempo todo, a narradora pontua que não estava tentando se matar. Porém, todas as suas ações diziam o contrário. Inclusive, quando ela qualificou a mulher que se jogou das torres com: “ela é linda”, senti uma relação de espelhamento absurda. Ela via aquela cena o tempo todo porque satisfazia sua fantasia ao ver uma mulher que, como ela, era linda e fez o que ela não faria, não abertamente, mesmo que tivesse ficado parcialmente morta durante um ano inteiro. Ver aquela cena, repetidamente, era como ceder à pulsão de morte e, por alguns segundos, chegar ao ponto zero de tensão.

A Assombração da Casa da Colina (Shirley Jackson)

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a_assombracao_da_casa_da_colinaUma colina não é exatamente uma montanha, talvez ela esteja mais próxima de ser um morro do que de ser montanha. Ela é o que fica entre o chão e o céu, na metade do caminho, e guarda segredos tanto de um quanto do outro. Embora em diversas culturas a colina seja vista como a primeira manifestação da criação do mundo, pois sua saliência a diferencia do caos inicial, para os celtas, ela simboliza o outro mundo.

NENHUM ORGANISMO vivo pode existir com sanidade por longo tempo em condições de realidade absoluta; até as cotovias e os gafanhotos, pelo que alguns dizem, sonham. A Casa da Colina nada sã, erguia-se solitária em frente de suas colinas, agasalhando a escuridão em suas entranhas; existia há oitenta anos e provavelmente existiria por mais outros oitenta. Por dentro, as paredes continuavam eretas, os tijolos aderiam precisamente a seus vizinhos, os soalhos eram firmes e as portas se mantinham sensatamente fechadas; o silêncio cobria solidamente a madeira e a pedra da Casa da Colina, e o que por lá andasse, andava sozinho.

Assim começa A Casa da Colina,  de Shirley Jackson, um dos maiores clássicos do terror. Talvez vocês não reconheçam, de imediato, mas já “estiveram” nessa casa, afinal, o título original do livro é The Haunting of Hill House, que também é o nome da série da Netflix que foi livremente inspirada no livro da Rainha do Terror. Entretanto, não pensem que, por terem visto a série, não se assustarão com o livro, porque  além de ela não ser  uma adaptação fidedigna do romance, série e livro são mídias diferentes.

Ao optar por iniciar a narrativa descrevendo, brevemente, a casa, a autora acaba por situá-la como uma personagem do romance. E, já de início, é possível notar que subverte-se a ordem de uma casa como lugar de segurança, conforto e aconchego, pois a Casa da Colina, desde sua primeira aparição no livro, é caracterizada como insana e solitária. É importante atentarmo-nos à personificação da casa porque o fato de ela manifestar características humanas repreensíveis é um dos pontos chaves da constituição do tipo de terror elaborado pela escrita de Jackson.

John Montague, doutor em filosofia com formação em antropologia, nutria interesse por manifestações sobrenaturais. Ancorado nesse interesse, organizou uma expedição para a Casa da Colina a fim de averiguar, durante os três meses que passaria lá, os segredos guardados por aquela soturna casa de oitenta anos. Para acompanhá-lo nesse estudo, ele convidou diversas pessoas, mas, no fim, só conseguiu a confirmação de quatro. A primeira delas é Luke Sanderson, sobrinho da atual dona da casa que seria investigada. Apesar de ser mentiroso e ladrão, Luke parecia ter um forte instinto de autopreservação, o que o Dr. achou que, de certo modo, o qualificava como convidado ideal para passar um tempo naquele lugar. Além dele, confirmaram presença Theodora e Eleanor Vance.

A primeira tinha uma loja de antiguidades, era uma artista que assinava seus desenhos como Theo, e sensitiva, motivo pelo qual fora convidada para a expedição à Casa da Colina. Ela se apresentava apenas como Theodora, sem sobrenome. Seu mundo era “feito de prazeres e cores suaves”. Já Eleanor Vance era uma mulher de trinta e dois anos, sozinha, que dormia em uma cama no quarto da sobrinha. Passara boa parte de sua vida cuidando da mãe, acamada, e, quando ela falecera, fora morar com a irmã, o cunhado e a sobrinha. Eleanor foi uma das escolhidas para passar três meses na Casa da Colina porque quando tinha doze anos, e sua irmã dezoito, estivera envolvida com fenômenos de poltergeist. À época, seu pai havia falecido há menos de um mês, e, do nada,  começou a chover pedras sobre sua casa.

É a partir do olhar de Eleanor que fazemos o trajeto até a Casa da Colina. E é acompanhando o seu percurso até essa casa que tomamos notas das falas que parecem avisar à Eleanor de que é um erro ir àquela casa. Primeiro, tem a confusão com a irmã, que a proíbe de usar o carro – mesmo que ela tenha investido dinheiro na compra do automóvel, que pertence às duas. Depois, por meio do aparecimento de uma velhinha bastante sinistra em quem Eleanor esbarra quando está indo pegar o carro escondido da irmã. Para se redimir com a velhinha, Eleanor pagou-lhe um táxi. Entretanto, quando o taxista perguntou para onde ela estava indo, a velhinha sorriu e respondeu: “Depois eu digo”. Em seguida, ela olhou para Eleanor e disse que rezaria por ela. Quando chegou à cidade em que ficava a Casa da Colina, Hillsdale, Eleanor, ao parar para lanchar, ouviu de um morador local: “Todo mundo vai embora daqui. Ninguém vem para cá.” Para completar, ao chegar no portão da Casa da Colina, o caseiro, Sr. Dudley, lhe disse: “Não vai gostar daqui — disse. — Vai-se arrepender de ter vindo.”

A narração em terceira pessoa utiliza Eleanor como balizadora as ações da casa e dos outros personagens do livro de Shirley Jackson.  Embora o foco narrativo seja na terceira pessoa, eventualmente Eleanor  se intromete na narrativa por meio do discurso indireto livre para mostrar-nos suas impressões acerca da casa e das outras pessoas que também estavam na residência. Isso acontece quando sua própria consciência lhe avisa dos perigos que ela correria ao entrar na casa: “A casa era vil. Estremeceu e pensou, as palavras fluindo livremente no silêncio de sua mente estarrecida, a Casa da Colina é vil e infame, é doentia; saia daqui imediatamente.” Ela não saiu. Entrou na casa, conheceu a pouco simpática Sra. Dudley, cozinheira, e, aos poucos, os demais convidados começaram a chegar.

Quando todos já estavam na casa e haviam jantado, Eleanor perguntou ao Dr. Montague o porquê de eles estarem lá. Ele disse que preferia falar sobre isso na manhã seguinte, mas, depois da insistência do grupo, disse que temia que se falasse sobre a história da casa, alguns deles poderiam desistir, e não seria fácil ir embora à noite, já que os portões estavam trancados – o Sr. e a Sra. Dudley sempre trancavam tudo – e completou:

A Casa da Colina tem reputação de insistir em hospitalidade; parece que não gosta de perder seus convidados. A última pessoa que tentou deixar a Casa da Colina no escuro — foi há dezoito anos atrás, garanto — foi morta na curva da estrada, quando seu cavalo disparou e a imprensou contra aquela árvore grande.

Essa fala do Dr., ao mesmo tempo em que faz com que nós, leitores, pensemos que ele, Eleanor, Theodora e Luke devessem sair de lá o mais rápido possível, também faz com que pensemos que está tudo bem eles passarem a noite lá, já que a outra opção sugere que eles fossem morrer. Esse momento, aparentemente sem relação com o resto da história, só volta a nos assombrar no desfecho do livro, quando já aconteceram tantas coisas que nem conseguimos mais nos lembrar dele.

Em seguida, Dr. Montague começou a contar a historia da casa. Ela fora construída por Hugh Crain, cuja esposa morrera minutos antes de conhecer a casa em que moraria, pois a carruagem que a levava capotou na estrada. Além do esposo, ela deixou duas filhas, pequenas. O Sr. Crain se casou mais duas vezes. A segunda Sra. Crain morreu de uma queda, e a terceira morreu na Europa. Após a morte da terceira esposa, Hugh Crain decidiu fechar a Casa da Colina e as filhas, que ficaram sob os cuidados da governanta enquanto a madrasta e o pai viajava pela Europa, foram morar com uma prima. O Sr. Crain não voltou para o país. Após crescerem, as duas irmãs passaram o resto de suas vidas brigando pela casa. A mais nova se casou, e a mais velha fora morar na casa e arrumara uma acompanhante, que ficou com a casa quando ela faleceu.

Quando a irmã mais velha era viva, a mais nova vivia querendo alguns artefatos da casa, e elas brigavam muito por causa disso. Quando herdara a casa, a acompanhante insistia em dizer que a irmã mais nova entrava lá, à noite, e roubava coisas, porque, aparentemente, sumiam objetos. Entretanto, a casa era trancada todas as noites, e permanecia assim, quando amanhecia, o que indica que se alguém mexia nas coisas da casa, deveria estar lá dentro. Mas, como, se apenas a acompanhante morava lá? Depois de um tempo, a acompanhante “parece que enlouquecera com a convicção de que não havia fechadura ou cadeado que impedisse a entrada do inimigo que invadia sua casa todas as noites…” e acabou se enforcando, no minarete da torre da Casa da Colina.

Após seus convidados para a expedição fazerem alguns comentários, o Dr. Montague sintetizou o que pensa sobre a Casa da Colina: “o mal é a própria casa, eu acho. Aprisionou e destruiu as pessoas e suas vidas; é um lugar de malignidade contida.”

Mais tarde, deitada na cama, no quarto azul, Eleanor refletia sobre o dia que tinha passado e sobre os outros convidados. Cobriu a cabeça com o cobertor e deu uma risadinha. “Na cidade nunca dormia com a cabeça embaixo das cobertas; como mudei hoje, pensou.” As epifanias de Eleanor, de algum modo, me lembram das personagens de Clarice Lispector. Pelo menos, no início da narrativa. Depois de alguns dias na Casa da Colina, ela começou a demonstrar sinais de que estava sendo bastante afetada pela malignidade daquele lugar.  Mas a primeira noite na casa foi tranquila para todos.

No dia seguinte, eles começaram a perceber que as portas da casa não ficavam abertas. Mesmo que eles colocassem escoras, quando voltavam a olhar, as portas estavam fechadas e os objetos utilizados para que elas não se fechassem haviam voltado para o lugar que ocupavam antes de servirem como escoras. Eles queriam acreditar que era a Sra. Dudley, caseira e cozinheira, que fechava as portas, ou talvez dissessem isso na tentativa de manterem a racionalidade, o que ficou bastante complicado quando, durante o tour que fizeram pela casa, ao chegarem em um determinado ponto da residência, serem atingidos por um frio absurdo. O doutor disse que esse lugar parecia ser o coração da casa.

Na noite do segundo dia, Theodora e Eleanor acordaram com o barulho de batidas nas portas. Eleanor acordou porque Theodora a chamou, então foi para o quarto dela pelo acesso que tinha entre os quartos azul, o seu,  e o verde, o da outra convidada. As batidas persistiam por um minuto e paravam. Depois, recomeçavam. Parecia que, o que quer que fosse que estivesse batendo, ia, metodicamente, de porta em porta, desse modo, passando por todas as portas do corredor. Quando o barulho ficou ensurdecedor, o ar gelado entrou por debaixo da porta e Theodora e Eleanor começaram a tremer de frio. As maçanetas das portas começaram a ser giradas, e as mulheres confirmaram uma para a outra que as portas de ambos os quartos estavam trancados, pois Eleanor trancara a porta do quarto azul antes de ir se deitar, então, não havia como a coisa que girava maçanetas e caminhava pelos corredores entrar no quarto de Theodora por intermédio do outro quarto.

— Não pode entrar — disse Eleanor, frenética, e novamente fez-se silêncio, como se a casa ouvisse com atenção suas palavras, compreendendo, concordando cinicamente, contente em esperar. Ouviu-se uma risadinha fina, um golpe de ar pelo quarto, a risadinha louca crescendo, depois sussurrando, e Eleanor ouviu tudo subindo e descendo a espinha, uma risadinha maligna de triunfo passando por elas e rodeando a casa, e então ouviu o doutor e Luke chamando das escadas e, misericordiosamente, tudo terminou.

Quando o Dr. e Luke chegaram ao quarto e foram informados do que aconteceu, disseram que estavam fora da casa, procurando por algo, parecido com um cachorro, que havia passado perto do quarto do Dr, que acordara Luke para ajudá-lo a procurar pelo animal. Depois, ele disse: “— Quando Luke e eu fomos chamados lá fora e vocês duas ficaram presas aqui, não lhes parece — e sua voz estava muito calma —, não parece que a intenção foi, de alguma forma, nos separar?”

Parecia que a casa começara a agir, efetivamente, para separá-los. E o próximo passo foi começar a colocá-los uns contra os outros. Apareceu uma escrita em uma das paredes da casa com os seguintes dizeres: “AJUDE ELEANOR A VOLTAR PARA CASA”. Depois do susto inicial, Eleanor perguntou para Theodora se fora ela que escrevera aquilo, como uma brincadeira. Theo rebateu, dizendo que Eleanor sabia que nenhum dos quatro escrevera aquilo. Não satisfeita, ela fez a mesma pergunta para Luke. Então, Theodora disse que poderia ter sido a própria Eleanor que rabiscara aquelas palavras na parede, como um pedido de socorro. Ela ficou muito irritada com essa suposição.

Quando o quarto e as roupas de Theodora ficaram cheios de sangue, a tensão na casa aumentou. Theo começou a acusar Nellie/Nell, que é como chamava Eleanor, de ter feito isso, e, desde então, Eleanor se pegava imaginando coisas ruins sobre a artista; chegou, até, a imaginar sua morte. Quando Luke e o Dr. chegaram ao quarto de Theodora e viram todo o sangue, tiveram outra surpresa. Dessa vez, fora escrito, com sangue, no papel de parede do quarto de Theodora:  “AJUDEM ELEANOR A VOLTAR PARA CASA”.

(A partir daqui, há muitos spoilers. Caso não queira detalhes sobre o desfecho do livro, sugiro que você pule os próximos cinco parágrafos e vá direto para o último).

Eleanor parecia ser cada vez mais afetada pela casa. As coisas pioraram quando, quase uma semana depois que os quatro estavam lá, a Sra. Montague e seu amigo, Arthur, que dirigiu para ela, terem ido à Casa da Colina ajudarem na investigação do Doutor. Eles decidiram usar a prancheta, algo parecido com Ouija, uma forma de escrita automática utilizada para se comunicar com seres intangíveis. Embora o Dr. não fosse adepto da Prancheta, sua esposa o era, e insistiu em utilizá-la. Após terem realizado o procedimento na Biblioteca, a Sra. Montague e Arthur compartilharam os resultados com o resto do grupo. Arthur leu as perguntas que foram feitas ao suposto fantasma/espírito e a Sra. Montague leu as respostas. O que se manifestou por intermédio da prancheta disse ser Eleanor, Nellie, Nell e disse que queria ir para a casa, que queria a mãe e, quando interrogado sobre onde era sua casa, respondia: “perdida, perdida, perdida”.

Depois desse acontecimento, Eleanor começou a demonstrar sinais de que sua sanidade estava seriamente ameaçada pela casa. E isso garantiu o que foi, na minha opinião, o momento mais assustador de todo o livro. Ela começou a espionar os outros moradores da casa, e a agir como se não estivesse lá, se escondendo deles, enquanto os vigiava. Então, para o meu desespero, reencenou o que, antes, parecia apenas ter vivenciado: as batidas nas portas, o vai e vem pelo corredor, as risadas insanas, o girar das maçanetas dos quartos, enfim. E ela sentiu prazer em perceber que Theodora estava com medo. Isso sugere que Nellie estava, de certo modo, se tornando parte da casa, pois compartilhava de sua insanidade e sadismo. Mas também instaura a dúvida de que, talvez, de algum modo, ela estivesse envolvida da outra vez que as batidas incomodaram os moradores da casa. Nesse ponto, é possível lembrarmo-nos da quase imperceptível risada que ela deu, ao cobrir a cabeça, na primeira noite que passou na Casa da Colina. Se a risadinha debaixo do cobertor é um indício de que Eleanor já tinha sido afetada pela casa quando ainda pensava que estava tudo bem, não se pode ter certeza. Mas a sugestão de que isso possa ter acontecido é bastante assustadora.

Com isso em mente, começamos a questionar outras situações que, no primeiro momento, dávamos como certas. Antes dessa sugestão, eu acreditava piamente que,  da  primeira vez que as batidas na porta e as risadas ensandecidas aconteceram, Eleanor estivesse o tempo todo ao lado de Theodora. Mas então me lembrei do dia em que Eleanor pensou que segurava a mão de Theodora, muito forte, quando o quarto estava brutalmente frio e escuro. Nesse dia, enquanto isso acontecia, ela tentava falar, mas não conseguia, só balbuciava. Quando as coisas começaram a se normalizar, e ouviu Theodora, do outro lado do quarto, sem segurar em sua mão, chamando por ela, Eleanor disse: “Meu Deus… de quem era a mão que eu estava segurando?” (Isso é absurdamente assustador, mas confesso que eu teria ficado mais apavorada se não tivesse visto a série da Netflix antes, já que ela se utilizou dessa estratégia). Se a história é construída a partir da percepção de Eleanor sobre as situações, é possível que, da primeira vez que o arroubo de batidas nas portas dos quartos e as risadas insanas aconteceram, ela pensasse que estava ao lado de Theodora, o tempo todo, mas, na verdade, não estava? É possível que Theodora pensasse que Eleanor estava lá, o tempo todo, mas na verdade, não estava? Do mesmo modo que Eleanor segurou uma mão e assumiu que fosse a de Theodora, Theo poderia ter ficado no quarto com alguém e assumido que esse alguém fosse Eleanor.

Assustador, também, é o penúltimo ato de loucura protagonizado por Eleanor na casa, o que fez com que eu resgatasse na memória algo que o Dr. Montague disse em um dos primeiros dias que os quatro passaram na casa: “Nenhum fantasma em todas as histórias longas de fantasmas jamais machucou alguém fisicamente. Os únicos danos são causados pela própria vítima a si mesma.” Eleanor subiu na escada da torre, e colocou em risco não apenas a sua vida, mas também a de Luke, que subira para tirá-la de lá. No momento em que Eleanor foi em direção à torre, eu tive quase certeza de que ela, como a acompanhante da irmã mais velha, fosse se enforcar lá, o que não aconteceu. Confesso que o fato de eu ter visto a série da Netflix antes de ler o livro contribuiu para isso, mas as reações, os pensamentos que a torre causava em Eleanor ao longo do livro também me levaram a acreditar nisso. Depois do incidente da torre, a Sra. Montague ajeitou as coisas para que o Dr. Montague mandasse Eleanor de volta para a casa da irmã, pois ela estava colocando a vida de todos em risco.

Desse modo, penso, eles acreditavam que ajudariam-na a voltar para casa. Entretanto, Eleanor já estava nas garras da Casa da Colina que, como explicado pelo Dr. na primeira noite que passaram nessa residência, não gostava de deixar seus convidados partirem. É nesse ponto que compreendemos a importância da história que o Dr. contou da pessoa que, há 18 anos, tentara ir embora da Casa da Colina e morrera quando seu cavalo disparou e a imprensou contra a árvore, porque após o Dr. Montague tê-la mandado embora – mesmo que ela pedisse, por inúmeras vezes, para ficar – Eleanor, protagonizando o seu último ato de loucura, jogara, deliberadamente, o carro contra a árvore. Enquanto o fazia, ela se perguntava o porquê de estar fazendo aquilo, mas já era tarde para se obter qualquer resposta. Ela estava, de algum modo, voltando para casa: a Casa da Colina.

O livro termina como começou: a narrativa é pendular, isto é, volta ao ponto de partida: a descrição da Casa da Colina erguendo-se, solitária, e agasalhando a escuridão. A Casa, que existia há oitenta anos, ainda estava lá, onde provavelmente permaneceria por mais oitenta anos. Diferentemente do que se espera da maioria dos livros de terror, A Assombração da  Casa da Colina não nos assusta pela exploração do grotesco, de gritos e imagens aterradoras. O livro de Shirley Jackson ancora-se no terror psicológico, o terror em que predomina a sugestão, não a exposição. É como se a casa fosse a amplificação do inconsciente das pessoas que passam por ela, o que leva as pessoas a um estágio de desequilíbrio tão intenso que faz com que elas exibam todos os traços reprováveis de suas personalidades que, racionalmente, tentaram reprimir. O medo ao qual a Casa da Colina nos submete não é um medo gritado, é um medo sussurrado, balbuciado, quase inaudível, mas constante, o que faz com que fiquemos, sempre, no estado de espera. Sempre à espera do momento em que a casa aumentará o volume e, então, consumirá os seus visitantes.

Na escuridão da mente (Paul Tremblay)

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naescuridãodamenteVocê quer saber um segredo? Vai guardá-lo com cuidado e amor? Isso não acontecerá de maneira óbvia, mas você e eu não estamos sozinhos aqui. Esse trecho da canção My Head is Full of Ghosts, de Bad Religion, é uma das citações que abrem Na escuridão da mente, de Paul Tremblay, cujo título original, não por acaso, é A Head Full of Ghosts. Uma cabeça (mente?) cheia de fantasmas não parece algo tão incomum quando se trata de um livro de terror, mas na medida em que uma adolescente de quatorze anos começa a martelar a ideia de que há vozes em sua cabeça, o incômodo parece preencher a nossa mente a ponto de querermos, o mais rápido possível, desvendar o porquê de tudo isso. Mas Merry esperou. Por quinze anos, Meredith Barrett esperou para contar a sua história, para contar como a sua mente reconstruiu tudo o que acontecera quando ela tinha oito anos.

John e Sarah Barrett tinham duas filhas: Marjorie e Meredith, esta chamada por todos de Merry. Depois de dezenove anos trabalhando em uma fábrica, John ficara desempregado. Foi mais ou menos aí que as coisas começaram a desmoronar, mesmo que, à época, Merry ainda não tivesse percebido exatamente o que estava acontecendo. Ela tinha Marjorie, sua irmã, que criava e recriava histórias nas quais elas eram personagens, e isso a confortava e fazia com que ela se imaginasse como a irmã, no futuro. Mas Marjorie também começou a desmoronar, e foi quando as coisas começaram a ficar difíceis para Merry.

Marjorie estava começando a manifestar sinais do surto psicótico que a acometeria e, posteriormente, se elevaria à esquizofrenia, mas seu pai – que após ficar desempregado tinha retomado suas raízes católicas – não viu as coisas dessa maneira; ele começou a pensar que ela estivesse  possuída por um demônio. Linha de raciocínio que, no início do livro, é veementemente contestada por Sarah, sua esposa, que acreditava que a filha estivesse doente e precisasse de cuidados médicos, não de devaneios religiosos. Mas essa leitura  é-nos apresentada como uma interpretação tardia de Merry. Quando as coisas estavam estranhas, ela ainda não conseguia entender o que estava acontecendo, embora sentisse medo.

Para nós, leitores, o clima de falta de segurança, de medo e pavor se instaura quando Marjorie diz à irmã que entra em seu quarto toda noite e a observa enquanto ela dorme. “Na noite de ontem, apertei seu nariz até que sua boca pequena se abrisse para pegar ar.” A irmã mais nova tenta, de todas as maneiras que uma criança de oito anos é capaz, manter seu quarto seguro, mas a irmã mais velha sempre entra, e mexe com as coisas e com a cabeça de Merry, e isso acontece na mesma época em que a filha mais velha dos Barrett começa a mostrar claros sinais de que não está bem, falando coisas estranhas, vomitando do nada,  entre outros.

As informações sobre o real estado de Marjorie vão se desenhando aos poucos. Ela está se consultando com um psiquiatra, mas não parece estar melhorando e, mesmo contra o desejo de sua esposa, que esperava que o tratamento médico fizesse efeito, John começa a investir na ideia de que Padre Wanderly pudesse ajudá-los a lidar com a situação que, para o senhor Barrett, trata-se de possessão. Nesse contexto, engendrada pelo referido padre, aparece a oportunidade para tirá-los da situação financeira complicada em que  se encontravam: um reality show, chamado A Possessão, filmado na casa deles, contendo seis episódios, com o intuito de exibir, ao vivo (ou o mais próximo disso), o exorcismo de Marjorie.

O livro é narrado a partir de três perspectivas: duas correspondem ao presente e uma ao passado. Inicialmente, temos Meredith, no presente, revisitando sua casa de infância após quinze anos. Ela está acompanhada de Rachel, uma best-seller que estava escrevendo um livro não ficcional sobre a história da família Barret, e Merry será sua consultora criativa, isto é, vai lhe contar a história a partir do que sua memória guardou e recriou daqueles eventos. Em seguida, somos apresentados à Karen Brissette, uma blogueira apaixonada por histórias de terror que começou a escrever uma série de posts no blog sobre o programa que narrara a tragédia particular da família Barrett: A Possessão. Então somos colocados no contexto dos acontecimentos, que são narrados pela Merry com oito anos.  De certo modo, são narrados pela Meredith de 23 anos, mas com um estilo de contar que remonta às suas lembranças de oito anos.  No decorrer do texto, descobrimos que as três perspectivas narrativas são orquestradas por Meredith, que é a autora do blog de terror. As diversas vozes narrativas assumidas por Merry são análogas a uma de suas habilidades quando criança, a de imitar vozes.

Essa habilidade nos proporciona um dos momentos mais sinistros do livro. Marjorie já estava doente, a casa estava cheia de câmeras, para a gravação do programa de TV. Nesse dia, durante o jantar, Merry imitou vozes e foi congratulada por isso. Pouco depois, Marjorie teve um surto, no qual assumiu diversas vozes estranhas, vomitou, entre outros. Quando o surto estava quase passando:

Marjorie cantarolou a melodia novamente, mudando de tom e timbre tão rápida e abruptamente que era desorientador, e parecia que minhas orelhas iriam estourar. Ela rastejou pela sala de jantar, se movendo como um lagarto ou algo tão antigo quanto, em direção à entrada e as escadas.
Então ela disse de longe:
— Eu também sei imitar vozes, Merry.

Nesse momento, foi inevitável que eu me lembrasse de mais uma das citações que abrem o livro: “É tão agradável ficar neste quarto enorme e me rastejar como eu bem entender!” O trecho pertence ao livro O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, que é mencionado no decorrer da narrativa. E, mesmo quando não é diretamente mencionado, se faz presente na casa dos Barrett, cenário da história narrada. Um dos momentos mais tensos da narrativa quando, durante uma crise, Marjorie ameaça arrancar a língua da irmã, acontece no solário, cujo papel de parede é amarelo. Amarela, também, é a cor que Merry, já adulta, decidiu pintar a sua sala de estar.

O jogo com as cores ao longo da narrativa é bastante eficiente em delinear a articulação do enredo. O quarto de Merry, no apartamento em que ela vive já com vinte e três anos, tem as paredes azuis e, ao centro, uma cama com um edredom felpudo branco. Ele parece recriar a atmosfera do quarto que ela tivera na infância: uma casa de papelão, branca, que ficava no centro do seu quarto, todo pintado de azul, o que fazia com que ela sentisse que tinha um céu todo para si. A casa de papelão acaba por assumir um papel dúbio no decorrer da narrativa. Inicialmente, ela era o lugar em que Merry se sentia protegida. Pouco tempo depois, passou a ser o espaço em que coisas estranhas aconteciam e, por isso, na metade do livro, acabou sendo colocada no porão da casa dos Barrett.

Dúbia, também, é a simbologia da cor branca. Às vezes, ela transmite paz e está presente em diversos ritos de passagem. Entretanto, ela também é a cor dos lençóis que usamos quando queremos nos fantasiar de fantasmas. Para o pintor Kandinsky, o branco produz sobre nossa alma o mesmo efeito do silêncio absoluto. E se levarmos em consideração a simbologia conforme a qual a morte precede a vida, o que conceberia o nascimento como um renascimento, o branco é, primitivamente, a cor da morte. O branco, como não cor, também é aquilo que se desfaz, torna-se transparente quando misturado a outras cores, como o sal (ou qualquer outra substância) que se coloca em um molho vermelho; como a palidez que tomou conta do rosto de Marjorie durante boa parte da narrativa; como o macarrão de Merry que, diferentemente do macarrão dos outros três membros da família, não continha molho vermelho, que ela detestava, apenas queijo e manteiga; como o espaço da memória que não conseguimos preencher; como as lacunas constituintes da história de Merry e sua família, enfim.

A exemplo do amarelo, do azul e do branco, o verde aparece em diversas situações descritas em Na escuridão da mente. Geralmente, as coisas ruins que acontecem com os Barrett, de certo modo, sempre se relacionam com a cor verde, que está presente desde os primeiros bilhetes que Marjorie envia para a irmã, passando pela história de todas as coisas crescendo pela cidade,  o vômito de Marjorie, durante as crises,  e tem seu ponto culminante como a cor da panela do molho de macarrão do último jantar da família Barrett na casa em que Merry passou sua infância. Essa cor volta, emblematicamente, como a cor que Merry, já adulta, pintou sua cozinha. Isso assume um teor simbólico quando, quase no fim do livro, descobrimos que na cozinha da antiga casa da família Barrett  aconteceu mais do que se poderia imaginar no início do livro.

(Os próximos cinco parágrafos – conto a citação como parágrafo também – contêm spoilers sobre o desfecho do livro. Caso você, como eu, não goste de spoilers, pule-os).

No dia em que o Padre Wanderly disse que precisaria do auxílio de Merry para ajudar na melhora de Marjorie, ela estava vestindo um suéter vermelho e, quando o padre lhe falou que parecia aconchegante, ela disse: “não é aconchegante. Estou usando porque sou uma repórter”. Quinze anos depois, quase no desfecho do livro, quando Merry conta à Rachel como sua irmã a manipulou de modo que ela colocasse veneno no molho, vermelho, do macarrão, o que acabou fazendo com que seus pais e sua irmã morressem, ela está usando um sobretudo vermelho: “Estou vestindo um suéter preto, jeans pretos, botas pretas e meu casaco preferido; um sobretudo vermelho espalhafatoso que não é quente o suficiente.” E, depois que ela contou tudo, a cafeteria em que estava com a escritora, ficou muito fria, quase congelando, do mesmo jeito que, supostamente, ficara o quarto de Marjorie no dia do exorcismo. Nesse ponto, é impossível não imaginar que é como se, ao fundo, estivesse tocando um trecho da canção de Bad Religion que dá nome ao livro: “você e eu não estamos sozinhos aqui”.

Todas as vezes em que Merry se relaciona com a cor vermelha, ela parece assumir outra persona ou, de algum modo, estar diante de uma perda ou de um rito de passagem. No início do livro,  ela conta que, quando criança, amarrava fio dental vermelho nos dentes frouxos e o deixava lá até que eles eles caíssem. No passado, quando usou o suéter vermelho, ela estava fingindo que era uma repórter, usava até um caderninho que ganhara de um dos membros da equipe do reality show sobre sua família. Em sua casa, já adulta, o quarto vermelho era o quarto de mídia, onde ela tinha tudo relacionado ao mundo do terror, ou seja, de onde ela tirou a maioria das referências que citou, como Karen Brissette, no blog:

O Exorcista e suas quatro sequências e prequelas; O Exorcismo de Emily Rose; O Último Exorcismo; The Devil Inside Me; Invocação do Mal; Constantine; O Ritual; REC 2Horror em Amityville, as duas versões; Atividade Paranormal e suas sequências; A Morte do Demônio I e II; Exorcismo. — Rapidamente, explico como outros títulos como Sessão 9A Casa de Noite Eterna, A Mansão Macabra e O Iluminado se encaixam também nessa subseção. Sobre livros, comento sobre outros títulos nobres além do óbvio escrito por William Peter Blatty. Incluem Come Closer, de Sara Gran; Pandemonium, de Daryl Gregory; O Bebê de Rosemary, de Ira Levin. Aponto alguns títulos de não ficção, como The Exorcist: Studies in the Horror Film; American Exorcism: Expelling Demons in the Land of Plenty; Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo; e até mesmo o risivelmente ruim Pigs in the Parlor: The Practical Guide to Deliverance.

Será que quando misturou o cianeto de potássio no molho, vermelho, do macarrão, Merry o fez por obediência, cega, à irmã – o que parece ser verdade – ou por que já estava sob a influência do que quer que fosse que estivesse na mente de sua irmã? Nesse ponto, as interpretações extrapolam o âmbito do racional – e eu já estou ignorando as evidências de que a filha mais velha dos Barrett sofresse de esquizofrenia -, afinal,  trata-se de um livro de terror, mas e se o demônio tivesse abandonado Marjorie e se alojado na mente de Merry? Quando está apresentando o seu apartamento à Rachel, em um determinado momento, Merry diz que ele é um lugar legal para repousar seus ossos cansados.  Essa afirmação é prontamente rebatida por Rachel, que diz: “Você é jovem demais para ter ossos cansados”, o que é verdade, pois ela tem apenas vinte e três anos. Mas e se essa fala não for inteiramente dela? E se a fala for de algum demônio antigo, mais especificamente, do demônio que supostamente estivera no corpo de sua irmã?

E se isto, o demônio ter abandonado o corpo de Marjorie e se alojado no corpo de Merry, tiver acontecido antes de Marjorie morrer? Quando vai falar sobre o último episódio de A Possessão, Karen Brissette – que é a Merry escrevendo em um blog a partir da perspectiva de uma adolescente, imitando a voz narrativa de uma adolescente – ao dissecar a cena do corrimão, fala sobre um momento em que “não há som e não conseguimos ver rosto nenhum. Meredith poderia ser Marjorie e Marjorie poderia ser Meredith”. Seria um prenúncio de que Merry se tornaria a irmã, mas não pelas coisas que faziam com que ela a admirasse, mas por ter sido possuída pelo demônio que outrora estivera em Marjorie? O leitor fica tão concentrado em descobrir o que estava acontecendo com Marjorie que, quando é informado de que a história não é apenas sobre um exorcismo, mas também sobre o envenenamento que vitimou três dos quatro membros da família Barrett, se dá conta de que deixou de observar diversas pistas. Quando interrogada por Rachel se  era Karen, isto é, se ela acreditava em tudo creditado à Karen ou se Karen era uma personagem, Merry respondeu: “Karen é apenas um pseudônimo, nada mais. Não tenho interesse algum em escrever ficção. Sim, acredito em tudo o que escrevi, senão não teria escrito.”

No primeiro capítulo do livro, antes que Merry começasse a contar a história de sua família, além de dizer que a história não era sua, afinal envolvia mais três pessoas, ela disse que não confiava na história por inteiro. Ela ressaltou que suas lembranças misturaram-se aos pesadelos, às coisas contadas por tios e avós, às lendas urbanas, aos elementos da cultura POP, às mentiras propagadas nas plataformas digitais, enfim. Para ela, sua história pessoal é literal e figuradamente assombrada por forças externas e é quase tão terrível quanto a que de fato aconteceu.

Para ser sincera, e deixando de lado todas as influências externas, existem algumas partes das quais me lembro com tantos detalhes horríveis que temo me perder no labirinto das lembranças. Há outras que permanecem confusas e misteriosas como se fossem a mente de outra pessoa e temo que, em minha cabeça, eu tenha provavelmente misturado e comprimido as linhas do tempo e os acontecimentos.

Na última página do livro, parecemos compreender o que ela quis dizer. A história da família Barrett contém muitas lacunas, subidas e descidas. Ela é contada mais por sugestões e suposições do que por afirmações. Resta ao leitor tentar articular o que se sabe com o que se imagina para, desse modo, preencher algumas das lacunas. Na escuridão da mente é um exímio livro de terror, feito para fãs do gênero, e, como tal, apresenta alegorias e elabora críticas sobre diversas esferas da sociedade sem, em momento algum, perder a linha narrativa que sobe e desce a escada da antiga casa dos Barrett, que lembra as teclas de um piano. Nesse cenário, a cada passo em um lance de escada, cuja simbologia remete tanto à ideia de ascensão quanto à ideia de queda – aludindo às relações entre o céu e a terra – toca-se uma triste e assustadora melodia.

Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu (Jenny Lawson)

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vamosfazerdecontaqueissonuncaaconteceu.jpgSe você acha que teve uma infância interessante, experimente ter um pai taxidermista que acordou você, que, à época, tinha oito anos, e sua irmã, que tinha seis, no meio da noite, para lhes apresentar a um esquilo mágico, isto é, um esquilo morto que foi empalhado e virou um fantoche. Se você acha que teve uma infância interessante, experimente ter como um dos casos famosos de sua família a história de um tio-avô que matou a esposa com um prego na nuca e a enterrou no quintal de casa. Essa não é a história toda: ele só confessou isso no leito de morte e os membros da família desenterraram a falecida para averiguarem a veracidade da história (sim, só para isso, não para comunicar o fato às autoridades) que, depois de confirmada (o prego estava lá), voltou para o túmulo, como a falecida. Se você acha sua vida interessante, conheça um pouco da vida de Jenny Lawson, que nos conta histórias (quase) reais de sua vida surreal em Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu.

Jenny Lawson é uma jornalista, escritora e blogueira americana que publicou três livros. Eu comecei a conhecer a sua história in medias res, isto é, no meio das coisas (no caso em questão, no livro do meio), porque o primeiro dos seus livros que li é o segundo, o maravilhoso Alucinadamente Feliz. Por causa da ordem que adotei para a leitura dos livros dessa irreverente escritora, eu fiquei bastante frustrada quando descobri que a capa da edição brasileira de Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu não tinha um rato morto na capa. História que conheci enquanto lia Alucinadamente Feliz, no trecho em que ela fala sobre o almoço de pré-lançamento do seu primeiro livro (Jenny Lawson me deu muitos spoilers! Mas ela não tem culpa se eu não li os livros na ordem em que eles foram escritos. Essa culpa é do mercado editorial brasileiro!):

O livro tem um tipo de humor negro, e a capa exibe um ratinho empalhado vestido de Hamlet e segurando a caveira de outro rato morto como se fosse um Yorick  minúsculo. Eu estava brincando quando pedi à editora para colocar meu rato morto, Hamlet von Schnitzel, na capa, mas não conseguimos encontrar nenhuma ideia melhor para um livro tão estranho, e era por isso que eu pedia desculpas o tempo todo para a equipe de marketing por fazê-los vender um produto com um roedor morto na capa.

letspretendthisneverhappened

O que dizer desse ratinho morto que mal conheço e já considero pacas?

Mas, apesar da frustração de não ter conhecido o rato shakespeariano empalhado, decidi ler o livro, e não me arrependi. Se não tivesse superado a adversidade inicial, eu não teria conhecido a história de Jenkins, um peru que perseguia Jenny até a escola. No dia em que seu pai chegou com Jenkins e os outros perus – que ele insistia em chamar de codornas – em casa, Jenny já sabia que isso não terminaria bem, mas ela não imaginou que acabaria com seu pai ajoelhado na escola limpando o pátio  que Jenkins e familiares encheram de cocô. Dei boas gargalhadas e quase me senti culpada por ter comido peru no Natal. Conforta-me saber que a linhagem de Jenkins se extinguiu há muito tempo, e em outro país, o que significa que não fui responsável por isso. Ainda bem!

Jenny Lawson, por outro lado, foi responsável por coisas inimagináveis, como por exemplo: não apenas ter lembranças aterradoras do Ensino Médio, como toda pessoa normal –  isto é, pessoa que não era popular ou que era a gótica dos livros – tem, mas ter como seu momento mais marcante dessa época escolar a lembrança de ter colocado o braço na vagina de uma vaca. Ela também foi responsável por criar um livro de memórias que não é um simples livro autobiográfico. É como se os seus textos fossem filhos biológicos de uma crônica e um ensaio, criados pelo roteiro de uma sitcom publicada em um blogue (eu não sei quando parei de escrever blog e comecei a escrever “blogue”, mas tenho certeza de que foi uma das coisas horríveis que aconteceram comigo nos últimos tempos).

Jenny, durante a infância, usava sapatos de saco de pão, para se proteger do frio. Ela não sabia usar talheres (eu não sei, e me sinto extremamente desconfortável em situações sociais em que o uso correto dos talheres é exigido. Quer dizer, eu me sentiria, se não fosse pobre e precisasse participar de eventos sociais em que se exige o uso correto dos talheres) e ficou bastante desconfortável ao descobrir que tinha algumas almofadas no sofá da mãe do seu namorado, que acabou se tornando seu marido, nas quais não se deveria sentar. (Ninguém me ensina essas coisas!). A visita foi tão complicada que eles foram embora antes do jantar (sim, ela se perguntou o porquê de ele ter passado tanto tempo tentando lhe ensinar a usar os talheres se eles foram embora antes do jantar) e pararam em uma sorveteria.

Na volta, paramos numa sorveteria, o que foi um alívio, pois eles fornecem somente um conjunto de talheres, a não ser que você peça o sundae especial, pois nesse caso se  recebe uma colher vermelha bem comprida para que se possa alcançar a calda no fundo do copo. E mesmo nesse caso tem um desenho de uma casquinha de sorvete na ponta da colher, caso alguém fique confuso quanto ao seu uso. Foi então que comecei a desabafar sobre como a sorveteria é melhor do que restaurantes chiques, e Victor olhou para mim fixamente, fascinado, como se estivesse completamente surpreso por ninguém ter pensado nisso antes, ou como se estivesse se perguntando o que havia de errado comigo. Era um olhar que ele tinha aperfeiçoado ao longo do último ano juntos.
Respirei fundo e me inclinei para frente e olhei para ele, impiedosamente. “Olha. Isso somos nós. Eu sou a colher de sorvete. Você é a colher de escargot. É por isso que nunca vai dar certo.”
Victor fez uma pausa e então se inclinou na minha direção por cima da mesa e sussurrou: “Garfo”, e eu disse: “Não entendi… É assim que vocês, ricos, xingam?” Ele deu um sorriso torto, como se estivesse tentando conter o riso, e disse: “Não. Escargot se come com garfo. Não com uma colher.” E eu gritei: “Exatamente! É exatamente disso que estou falando”. Ele riu e disse: “Não me importo se você não sabe o que é um garfo de escargot. Acho adorável que não saiba. E você vai aprender tudo isso. Ou não.

Mas não importa, porque eu gosto de colheres de sorvete.” Dei um sorriso hesitante, porque ele falou com tanta confiança que era difícil não acreditar nele, apesar de suspeitar que ele só estava sendo legal porque não queria que uma garota que nem sabia usar um sofá corretamente terminasse com ele. Essa é praticamente a pior maneira de todas para alguém terminar com você.

Eu achei isso muito fofo. Constrangedor, mas o Victor fez com que parecesse fofo. Eu ficaria extremamente constrangida numa situação dessas, porque, honestamente, eu cometeria todos os equívocos que a Jenny cometeu (com ênfase para o fato de não saber que escargot se come com garfo. Eu não sei nem o que é escargot, meu Deus do céu!) e outros mais. Mas o Victor faz com que as peculiaridades da Jenny pareçam coisas pequenas ao invés de empecilhos. Não se pode esperar menos de alguém que fez o pedido de casamento que ele fez.  Victor pediu a Jenny em casamento de um jeito que me lembrou  Sintonia de Amor. Não, o pedido não foi feito no Empire State Building, mas na rádio, por intermédio de uma gravação. Pensando bem, embora a Jenny tenha falado que quando conheceu o Victor ele parecia o Neil Patrick Harris, acho que, pelo menos em uma das fotos que vi no livro, ele me lembra, bastante, o Tom Hanks em Sintonia de Amor.

Mas então notei que ele estava olhando para mim e me dando um sorriso torto e escutei o Victor no programa da rádio conversar com o outro DJ sobre uma garota que ele havia conhecido e por quem estava apaixonado. Ele contou que no final de cada turno tocava “When We Dance”, do Sting, como sua despedida e como um “eu te amo” silencioso para ela. Aí ele disse que havia se apaixonado tanto por ela que iria pedi-la em casamento ali mesmo. Na maldita rádio.

A Jenny Lawson é como se fosse a minha melhor amiga, tirando o fato de que a gente ainda não se conheceu. Mas esse é um detalhe irrelevante. Ela também fica perdida na cidade em que mora. Ela também não entende muito bem as coisas que o GPS fala. Ela também lida melhor com referências não canônicas do que com a indicação correta das ruas. Mas ela dirige, o que eu não sei quando conseguirei fazer, já que tenho pavor de carro. Mas ela tem transtorno de ansiedade generalizada. E eu acabei de me dar conta de que isso não é uma competição.

E ninguém ousaria competir com a Jenny (somos amigas, eu já ouso chamá-la apenas pelo primeiro nome. Esse é um caminho sem volta. A verdade é que eu estou ditando o que estou escrevendo, e sempre fico perdida quando chega no sobrenome. Acho que a pronúncia seja algo como: “Lóssen”) quando se trata de ter vivido as coisas mais absurdas e não intencionalmente engraçadas, e de escrever não ficção enrolada em um papel de presente que grita: FICÇÃO! É exatamente por isso que sugiro que vocês fechem esta aba e abram a de uma loja online na qual possam comprar Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu e se deliciarem com a leitura enquanto vamos fazer de conta que eu nunca escrevi esse texto.

Alucinadamente Feliz (Jenny Lawson)

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alucinadamentefeliz“Este livro mudou a minha vida”. É o que diria sobre Alucinadamente Feliz uma pessoa absolutamente normal, ou ficcional, como aquelas pessoas que fazem propagandas de produtos milagrosos que fizeram com que suas rugas e cicatrizes desaparecessem (que horror! Eu não sei o que faria se não tivesse mais as minhas cicatrizes e minhas rugas para contar durante um momento de tédio profundo). Essas pessoas são encontradas, preferencialmente, naquelas propagandas duvidosas que infestam o feed de notícias do Facebook.

Alucinadamente Feliz é o segundo dos três livros que a jornalista, blogueira e escritora, Jenny Lawson, lançou. E eu não sou uma daquelas pessoas das propagandas estranhas que aparecem no Facebook, nem sou uma pessoa absolutamente normal (por isso, decidi começar pelo segundo livro da autora, o que me exime de tecer quaisquer comentários sobre o primeiro livro e, obviamente, sobre o terceiro. Sem spoilers, por favor!).

Prefiro acreditar que sou uma pessoa alucinadamente feliz, ou neurótica, o que também me deixa feliz, já que a outra opção seria:  “sou psicótica” (eu entendi, muito, o susto que a Jenny tomou quando sua médica lhe receitou um antipsicótico, mas não pelos motivos que se pode imaginar, embora por todos os outros que nossa mente é limitada demais para criar). Neurótica porque, enquanto lia o livro, eu me vi, parcial ou integralmente, em muitas das excentricidades narradas pela Jenny Lawson, o que fez com que eu me sentisse menos sozinha, mas também menos normal, graças a Deus!

E isso me leva a acreditar que poucas frases me descrevem tão bem quanto uma que Victor, marido de Jenny, lhe disse durante uma discussão: “é como se você fosse alérgica a fazer sentido”. Não sei se a frase se aplica a ela, mas se aplica a mim. Eu sou muito alérgica a fazer sentido. E uma prova disso é que fiquei em êxtase por encontrar alguém que, assim como eu, além de não gostar de sair de casa, também se sinta confortável ao fazer analogias ruins (que eu acho deliciosas!) com comida.

Nunca tive um surto psicótico. Raramente deliro. Nunca alucinei por outro motivo que não o uso exagerado de algum medicamento que nem deveria ter tomado. Só tenho problemas. Porém de uma forma que me faz ser… eu. Meus remédios não me definem. Não sou psicótica. Não sou perigosa. Os remédios são só uma pitada de sal. Um pouco de tempero para a vida, se preferir assim. Suas batatas assadas ficariam bem sem eles, mas qualquer um diria que aquela pitada de sal pode fazer toda a diferença. Eu sou as suas batatas. E fico melhor com sal. Talvez essa analogia seja ruim. (p. 52).

O subtítulo de Alucinadamente Feliz é: “um livro engraçado sobre coisas horríveis”.  E eu acho que isso já dá o tom do que virá a seguir, o que é reforçado pelos depoimentos fictícios – ah, como eu amo pastiche! – de personalidades sobre o livro. Isso situa a obra no campo do não compromisso com nada que não seja necessário para o bom desenvolvimento da narrativa. No início do livro, Jenny explica que o título dele veio de algo que salvou a sua vida. Ela sofre de depressão e outras coisas mais, e tinha passado seis meses em um poço do qual não conseguia sair. Então, abriu o blogue e escreveu um post no qual disse:

De modo geral, os últimos seis meses têm sido uma tragédia vitoriana. Hoje meu marido, Victor, me entregou uma carta informando a morte inesperada de mais um amigo. Talvez você imagine que isso vai me lançar numa espiral de ansiolíticos e músicas da Regina Spektor, mas não. Não vai. Estou de saco cheio da tristeza e não sei qual é o problema do universo, mas pra mim JÁ CHEGA. VOU SER ALUCINADAMENTE FELIZ, SÓ DE RAIVA.

Segundo a autora, poucas horas depois da publicação do post, #FURIOUSLYHAPPY [#ALUCINADAMENTEFELIZ] era um dos assuntos mais comentados do Twitter, o que foi o início de um movimento que não para de crescer. Acho que todas as vezes que alguém lê Alucinadamente Feliz, o movimento ganha mais um adepto. Sei que me ganhou, e eu nem sei se tenho algum transtorno mental (segundo a Jenny, todos nós temos), só sei que não tenho nenhum transtorno mental diagnosticado. De qualquer modo, nos momentos muito ruins, eu me lembro de que viverei momentos muito bons, e isso me dá algum alento, como me deu um quentinho no coração ler o modo com que Jenny explicou a possibilidade de alguém ser alucinadamente feliz:

Costumo pensar que quem sofre de depressão grave desenvolve um poço tão profundo de emoções extremas que pode conseguir experimentar a alegria num nível que também jamais poderia ser entendido pelas pessoas “normais”, e é disso que estou falando com ALUCINADAMENTE FELIZ. É sobre pegar os momentos em que as coisas vão bem e torná-las fantásticas, porque são esses momentos que nos fazem quem somos e que vamos levar para a batalha quando nossos cérebros declaram guerra contra a nossa própria existência. É a diferença entre “sobreviver” e “viver”. É a diferença entre “tomar um banho” e “ensinar o macaco mordomo a lavar seu cabelo”. É a diferença entre ser “são” e ser “alucinadamente feliz”.

Depois dessa explicação, eu tive a certeza de que não havia nenhum motivo para que eu preferisse ser sã a ser alucinadamente feliz (além disso, a Jenny Lawson é alucinadamente feliz e é amiga do Neil Gaiman! NEIL GAIMAN! Não me perguntem qual é a relação de causa consequência entre essas duas coisas. Ela não existe. O que eu quis dizer é que ser alucinadamente feliz não impede ninguém de ter uma vida fantástica e amigos incríveis.). Não sei se isso é bom ou ruim, mas sei que é ruim não falar sobre os sentimentos, então eu acabo falando coisas que fazem com que os outros fiquem desconfortáveis. Acho que a Jenny também faz isso. Na verdade, parte do trabalho dela é fazer isso, e ela o faz com muito bom humor, mas nem por isso deixa de fazê-lo de um modo tocante. Chorei sem pudor nas partes do livro em que ela tenta, por meio de algumas analogias, explicar o que é a depressão.

Depressão é… é como quando você usa a barra de rolagem meticulosamente para subir centenas de páginas de um documento no computador procurando um parágrafo específico que precisa consertar, e então tenta digitar, mas é levado automaticamente de volta para o fim do documento porque se esqueceu de colocar o cursor onde queria digitar. Aí você bate com a cabeça na mesa, porque esqueceu o lugar onde estava, e aí sua chefe entra enquanto você está com a cabeça sobre a mesa, e quando vê os sapatos dela atrás de você diz na mesma hora: “Não estou dormindo. Eu só estava batendo com a cabeça na mesa porque fiz uma merda aqui.”

[…]

Espere. Não. Não é isso. A depressão é como… quando você não tem uma tesoura para cortar aquela amarra de segurança de plástico grosso da tesoura que acabou de comprar porque não conseguia encontrar nenhuma outra. E aí você diz “Foda-se” e tenta usar todas as outras coisas do mundo para soltar a tesoura, mas tudo que tem são facas de plástico para manteiga e elas não ajudam em nada, então você se vê de pé na cozinha segurando uma tesoura que não consegue usar porque não encontra uma tesoura, e aí fica frustrada e joga a tesoura na lixeira e dorme no sofá por uma semana. A depressão é assim.

Embora tenha momentos de partir o coração, Alucinadamente Feliz prefere costurar as feridas em que coloca o dedo com fios de humor. Por isso, em algumas partes, a narrativa me lembrava, muito, um roteiro feito sob medida para a Lorelai de Gilmore Girls (eu preciso escrever que é de Gilmore Girls, embora, racionalmente, saiba que ela é a única Lorelai que a maioria das pessoas que lerá este texto conhece. Deve ser por coisas assim que as pessoas dizem que eu sou a Lorelai brasileira, e que eu, enquanto lia Alucinadamente Feliz me identifiquei muito com a Jenny Lawson), como na parte em que a Jenny cismou que queria um gato que se chamasse O Presidente para poder falar coisas como: “O Presidente não tira a bunda do meu teclado”, ou “O Presidente acabou de vomitar no tapete novo”, ou “Gosto de dormir com O Presidente, mas por que sempre acordo com a bunda dele na minha cara?”. Eu consigo imaginar a Lorelai falando isso. E só de imaginar, começo a rir. (Nota mental: rir sozinha não é um indício de sanidade).

Alucinadamente Feliz é um livro de memórias. Então, nele, Jenny Lawson falou a partir da sua experiência de pessoa com transtornos mentais o que costuma fazer para lidar com a depressão, mas deixou bem claro que cada pessoa é diferente e lida como pode com isso. Gostei muito das sugestões mas, de modo especial, adorei a prova da colher (não estou falando da Teoria da colher, que também é fenomenal e ganhou um lugarzinho no meu coração), que seria um ótimo manual de como não chafurdar na merda alheia, se fosse possível fazer um manual sobre isso, e se fosse possível não pisar, mesmo que com a pontinha do chinelo, no resto de merda alheia que ficou no asfalto.

Ela estava em uma festa em que começaram a servir sopa em colher. O garçom entregava a colher com  a sopa e sumia. As pessoas ficavam sem saber o que fazer com a colher. Elas estavam elegantíssimas, com uma incômoda colher na mão, ou no chão, ou  ou em qualquer lugar aleatório. Destacou-se, nesse cenário, uma mulher que lançou a colher na piscina.

Vi quando uma mulher olhou ao redor cheia de expectativa por um minuto e,  percebendo que ninguém voltaria para pegar a colher, deu de ombros e a jogou na piscina. Isso me pareceu babaca, mas não dá para deixar de respeitar esse nível de não-dou-a-mínima-para-talheres-que-nem-são-meus. Com aquele único arremesso de colher, ela disse a todo mundo na festa: “Se vocês não vão cuidar das suas coisas, então não contem comigo para me responsabilizar por essas merdas.”

Foi nesse momento que decidi que adorava aquela mulher e a sua atitude. Eu provavelmente não me sentiria assim se fosse um recém-nascido abandonado na porta dela, mas eu não era. Eu era uma mulher que havia acabado de ver outra mulher passar na prova da colher, uma prova que eu nem sabia que existia e para a qual ninguém mais havia estudado. E foi aí que prometi nunca assumir responsabilidade pela colher / atitude / estupidez de outras pessoas, porque, vamos ser francos, já tenho muita merda com que me preocupar. Desconfio que essa seja uma daquelas lições da vida que ninguém jamais coloca em prática, mas mesmo assim me sinto pronta.
Tente só me dar uma colher.

Eu sou a pessoa que joga a colher na piscina. Sem pensar duas vezes. Alguém que jogue uma colher na piscina não pode ser classificado como alguém que pensa duas vezes, eu sei. Eu penso milhões de vezes, mas não espero os pensamentos começarem a ficar coerentes para fazer as coisas. Eu penso antes, durante e depois que faço as coisas. Talvez seja por isso que eu faça muita coisa bizarra. Mas a outra opção é a seguinte:  começar a correr durante uma festa chique e procurar por um garçom. Quando encontrá-lo, entregar-lhe a colher, e dizer: “você sabe de quem é esta colher? Não é minha, e minha mãe me ensinou que eu não devo ficar com nada que não seja meu. Obrigada”.

Às vezes, eu tinha a sensação de que Alucinadamente Feliz fosse uma espécie de Pollyanna para a nossa geração: a de pessoas ansiosas, depressivas e com inúmeros transtornos que eu não saberia nomear, que se escondem do mundo “real” no Twitter, que

é como uma imensa turma de pessoas igualmente perturbadas que se escondem com você em banheiros e a fazem rir dentro do forte de travesseiros que você construiu num quarto solitário de hotel. Muitas delas sofrem dos mesmos medos, o que as mantêm igualmente isoladas, mas encontramos uma forma de estarmos sozinhas juntas.

Por que alguém ficaria feliz por ganhar muletas? A pessoa poderia ficar feliz por não precisar usá-las, diria Pollyanna. Por que a pessoa ficara feliz em ser insone, sofrer crises severas de ansiedade e estar com o pé rachado, e sangrando, por causa da artrite reumatoide? Porque isso fez com que ela saísse, de roupão, de madrugada, em uma rua de Nova Iorque, para apreciar a neve, disse Jenny Lawson.

Parecia que eu ia congelar, mas o frio logo anestesiou minhas mãos e pés doloridos. Andei devagarinho, descalça, até o fim do quarteirão, deixando as sapatilhas para trás como uma forma de me orientar na volta. Fiquei de pé no fim da rua, pegando a neve com a boca, e ri baixinho quando me dei conta de que, se não fosse pela insônia, pela ansiedade e pela dor, eu jamais teria ficado acordada para ver a cidade que nunca dorme dormindo e coberta para o inverno. Sorri e me senti tola, mas da melhor forma possível.

Ser alucinadamente feliz é como brincar de jogo do contente, mas de uma maneira mais intensa; é viver sob a égide do jogo do contente, é viver sabendo que as coisas muito ruins vão te paralisar, mas quando você conseguir voltar a se movimentar, pode ficar como um guaxinim empalhado com os braços para o alto, ou seja: tanto como se estivesse comemorando um gol do seu time quanto como se estivesse passando por uma revista policial ou fazendo uma prece. As interpretações são diversas, e as perspectivas também. Eu, como leitora de quadrinhos e brasileira, sempre vejo o guaxinim empalhado da capa do livro como o Rocket Raccoon – cujo planeta de origem é um manicômio, sabiam? – , sendo assaltado e gritando: “Perdi, perdi!”.

Alucinadamente Feliz é sobre continuar a ser, mesmo quando não se sabe muito bem ser o quê; é sobre viver, porque uma vez que se descobre que é possível ser uma pessoa estranha de um jeito “engraçado e excêntrico” ao invés de ser estranha de um jeito “triste e deprimente”, sobreviver não é o bastante. Talvez possa parecer muito difícil viver, mas, quando isso acontecer, sempre é possível se lembrar do conselho que Neil Gaiman deu à Jenny Lawson quando ela teve uma crise de ansiedade quase paralisante e não conseguia gravar seu audiobook (é audiolivro, né?): “finja que é boa nisso”.

Hoje vai ser diferente (Maria Semple)

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Na Biologia, a Fagocitose corresponde ao processo utilizado pela célula para digerir alimentos sólidos dos quais se alimentará. Um dos agentes do processo é o lisossomo, que contém as enzimas digestivas e, por isso, cuidará de quebrar os alimentos para que a célula possa aproveitar os materiais de que necessita. Na Literatura,  semelhantemente ao processo celular mencionado, o romance é um gênero textual que tende a, de certo modo, se alimentar de outros gêneros, retirando-lhes os excessos para que eles caibam no todo que se intenta apresentar. Nessa analogia, o autor desempenha o papel do lisossomo, ou seja, é aquele que seleciona, dos mais diversos gêneros textuais, elementos de que necessita para criar o romance.

Autor é o termo que, aqui, emprego na concepção de Foucault, para quem a noção de autor é discursiva, isto é, o autor é aquele que tem um conjunto de textos ligados ao seu nome e que tem responsabilidade sobre o que coloca em circulação. Fiz a opção pelo termo autor porque escritor seria todo o indivíduo que escreve. Já o autor tem uma função social melhor delineada, e acredito que Maria Semple se encaixe nesse perfil. E, aqui, amparo-me, mais uma vez, em Foucault, que utilizou o termo “fundadores de discursividade” para designar autores que, mais do que construírem suas obras, ditaram as regras de produção de outros textos. Acredito que a autora em questão, embora tenha publicado apenas dois romances – três, mas o primeiro ainda não foi publicado no Brasil -, tem potencial para isso.

No domínio discursivo da Literatura Ficcional, o tipo textual predominante é o da Narração, que intenciona a imitação da ação pela criação de enredo, personagens, situações, tempos e cenários de forma verossímil. Nas práticas sociais, esse tipo textual tende a se materializar no gênero romance. Entretanto, uma olhada rápida nos romances que ocupam as prateleiras das livrarias evidencia que, dentro de um romance, convivem muitos gêneros. Logo, apesar de as sequências tipológicas predominantes em um romance serem as narrativas, ao entrarmos em contato com textos materializados nesse gênero é possível que encontremos trechos de textos injuntivos, descritivos, entre outros.

Não há gêneros textuais puros, e o romance talvez seja o melhor expoente da forma híbrida com que os gêneros se apresentam. A partir disso, quero utilizar a noção de gêneros híbridos como chave de leitura para escrever o texto em que tentarei, de algum modo, expressar o modo com que me relacionei com Hoje vai ser diferente, novo romance da roteirista e autora Maria Semple.

Hoje vai ser diferente. Hoje estarei presente. Hoje vou olhar no fundo dos olhos de todas as pessoas com quem conversar e vou ouvir com atenção. Hoje vou brincar com Timby. Vou tomar a iniciativa de transar com Joe. Hoje vou sentir orgulho da minha aparência. Vou tomar banho, me vestir bem e só vou usar roupas de ioga para ir à aula de ioga, à qual não vou faltar. Hoje não vou falar palavrão. Não vou falar sobre dinheiro. Hoje vou buscar a simplicidade. Vou exibir uma expressão relaxada e um sorriso. Hoje vou irradiar calma. Bondade e autocontrole abundantes. Hoje vou prestigiar os comerciantes locais. Hoje vou dar o melhor de mim, vou ser a pessoa que sou capaz de ser. Hoje vai ser diferente. (p. 09).

A narrativa começa impactante.  O ponto de vista, inicialmente centrado na primeira pessoa, imprime ao começo de Hoje vai ser diferente um tom intimista, o que se intensifica ao sermos colocados diante de um relato que se assemelha a uma espécie de oração, mas ao mesmo tempo a frases retiradas de um livro de autoajuda e, ainda, semelhante a sentenças em tom de promessa que poderiam ter sido proferidas por uma pessoa que sofre de depressão e trava uma batalha diária para sair da cama. Com um pouco de esforço, também é possível entender o “hoje vai ser diferente”, proferido por Eleanor Flood, do mesmo modo que entendemos o “meu próximo filme vai ser melhor”, lema de Ed Wood, personagem do filme homônimo dirigido por Tim Burton: como um mantra. Assim,  o “hoje vai ser diferente” de Eleanor Flood carrega em si a constatação de que o ontem não foi bom, e que é necessário que ela faça do hoje um dia no qual não irá “andar por aí como um fantasma, mal-humorada e distraída, anuviada e apressada”. (p. 13).

Todas essas nuanças, que somos treinados para capturar ao entrarmos em contato com alguns dos gêneros textuais que perpassam a vida  cotidiana, nos apresentam uma personagem disposta a tomar o controle de sua vida, plano que, como em um episódio de uma série de comédia, é logo frustrado pela avalanche de situações com as quais ela não pretendia lidar, mas das quais não pode mais fugir, nem pelo meio usual de fuga, a poesia. Eleanor faz aulas de leitura poética, mas não para ser poeta, é para tentar organizar suas ideias e escrever um romance de memórias em quadrinhos, para o qual foi contratada há algum tempo.

Ela tem aulas particulares  com o melhor professor de poesia da Universidade de Washington. O poema estudado no dia em que Eleanor decide que será a melhor versão de si  é “A hora do gambá”, de Robert Lowell, considerado o precursor da poesia confessional. Durante a aula, Alonzo, o professor, diz a Eleanor que esse poema “captura o momento em que Robert Lowell reconhece que está começando a entrar em depressão e vai ser internado.” (p. 34). Ele completa o raciocínio dizendo que o poeta John Berryman considerou o poema “uma visão catatônica de terror paralisante” (p. 34). As imagens visuais criadas pelo poema são retomadas ao longo do dia e da narrativa – que mescla o ponto de vista entre primeira e terceira pessoas –  quando Eleanor passa por situações constrangedoras que acabam por evidenciar seu estado de confusão mental. Estado sobre o qual ela fala de modo irônico e com comentários polêmicos e ácidos que, por estabelecerem um diálogo estreito com o tom de humor que perpassa o romance, são suavizados.

Sobre meu constante estado de confusão mental – falta de foco é uma expressão cada vez mais adequada -, permita-me dividi-lo em três categorias: (1) coisas que eu deveria saber, mas nunca aprendi, (2) coisas que prefiro não saber e (3) coisas que sei, mas com as quais acabo ferrando.

Coisas que eu deveria saber, mas nunca aprendi? Diferenciar direita e esquerda. Desculpe, mas é melhor perguntar o caminho para outra pessoa.

Coisas que prefiro não saber? Muitas. O cérebro tem capacidade limitada, principalmente o meu. Então tomei uma decisão administrativa: adotar uma postura agressiva de não me interessar por determinados assuntos, tais como o conflito Israel-Palestina, Lena Dunham, o destino das pinturas roubadas da casa de Isabella Stewart Gardner, o que significa OGM, a preferência de Timby por meias três-quartos cinco minutos atrás na Gap, e identidade de gênero. Se isso limita minha existência humana, eu aceito meu detino com estoicismo.

Hoje em dia a conduta predominante na sociedade parece ser: Eu tenho uma opinião, logo existo. Minha conduta? Eu não tenho opinião, logo sou superior a você.

Coisas que sei, mas com as quais acabo ferrando? Horários. Se tenho um almoço ao meio-dia e meia, escrevo 12h30 na agenda. Mas, nesse meio-tempo, acontece alguma alquimia no meu cérebro e 12h30 se torna 13h.

Seria de se esperar que, chegando ao teatro meia hora depois de abrirem a cortina (doze vezes!), eu teria aprendido a checar e rechecar o horário no ingresso. Mas não. Eu gostaria de saber explicar, mas não consigo. Um dos enigmas da vida. (p. 63).

Eleanor Flood tem quase 50 anos, vive em Seattle, é casada com Joe Wallace – cirurgião -, com quem tem um filho, Timby, de quase 10 anos. Depois de vinte anos de casamento, as coisas se tornaram monótonas e, na maior parte do tempo, Eleanor e Joe vivem como colegas de quarto. Tiram o lixo, fazem as tarefas de casa, levam o filho à escola, fazem piadas, se reafirmam enquanto ateus e não falam sobre o passado. Esse é o cenário apresentado no início do romance que, em um roteiro que segue o arco aristotélico, chamamos de Ato I, no qual temos, em um primeiro momento, a exposição, que cumpre o papel de apresentar os protagonistas, dizer quem eles são, onde vivem, o que fazem, enfim, é o que nos dá o ponto de partida. Após a exposição, entramos na segunda parte do primeiro ato de um roteiro: a oposição.

É nesse ponto que Eleanor Flood realmente sente que seu plano de fazer com que o dia fosse diferente será frustrado. Ela estava em uma de suas aulas de poesia, que teve de ser encerrada às pressas após, pela quarta vez em duas semanas, seu filho, Timby, ter passado mal na escola. Ela buscou o filho, passou com ele na pediatra e foi ao consultório do marido, que não estava lá. A partir de algumas situações e falas da gerente e da recepcionista da clínica em que trabalha o cirurgião, ela percebeu que alguma coisa estava muito errada. No momento em que estamos prestes a conhecer o que, na “Jornada do Herói” de Joseph Campbell é chamado de obstáculo, recebemos uma explicação sobre como foi moldada a personalidade de Eleanor. Essa informação será essencial para compreendermos o porquê de a personagem lidar com as coisas de um modo diferente do esperado.

Uma coisa que acontece quando um de seus pais é  alcoólatra é que você cresce sendo o filho de um alcoólatra. Para quem não tem esse histórico, preste atenção agora e acredite em mim: esse é o principal fator que determina a personalidade de alguém. Não me importo se você só tira nota dez, se casa com um santo, rompe as barreiras de uma profissão dominada por homens, ou se você se reergue de fracasso após fracasso entremeado por breves passagens por seitas e hospícios: se você foi criado por um bêbado, antes de tudo você é o filho adulto de um alcoólatra. Para início de conversa, isso significa que você se culpa por tudo, evita a realidade, não confia nas pessoas, faz o impossível para agradar. Nem todas essas características são ruins: perfeccionismo é o que torna um aluno o melhor da turma; dificuldade para confiar nos outro gera autossuficiência; baixa autoestima pode ser uma excelente motivação; se todo mundo fosse entusiasta da realidade, não haveria arte.

O bônus de ter um pai bêbado foi que, para sobreviver, eu me tornei estranhamente atenta às mais sutis inflexões e linguagens corporais. Joe chama essa minha percepção aguçada de “poderes de bruxa”.

Para qualquer outra pessoa, “Você voltou!” significaria “Que bom te ver! Quanto tempo”. Mas, para a filha de um alcoólatra com poderes de bruxa, significava: “Joe disse que vocês três estavam viajando”.

E foi nesse momento que meu dia realmente começou. (p. 53-54).

É com o suposto desaparecimento do marido de Eleanor como fio condutor que se desenrolam os segundo e terceiro atos do romance, quase roteiro,  de Maria Semple. Nesse emaranhado de informações, entramos em contato com um complexo exercício metanarrativo: o fazer poético se entrelaça com o fazer quadrinhos, que é entrecortado por memórias fragmentadas, que exibem lembranças episódicas, compostas por sinopses de roteiros de uma Sitcom – série de comédia que se faz a partir da exploração cômica de elementos da vida cotidiana – que fazem parte de roteiros que compõem o que poderíamos chamar de temporada de uma Sitcom, isto é, o romance em seu formato final.

A apropriação do formato de roteiro pelo romance, com o recurso da backstory – o passado da personagem até o momento em que a história começa –  também nos revela, a partir de uma narrativa fracionada, os acontecimentos passados da vida de Eleanor, e o desfecho dos capítulos-episódios, como em uma série de TV, nem sempre é satisfatório, porque eles se encaixam no todo, que ainda está sendo construído; se encaixam no livro de memórias de Eleanor, que está parado há oito anos, como está parada a sua vida, que foi “suspensa” depois que aconteceu uma coisa muito ruim. Descobriremos o que aconteceu de tão ruim ao montarmos o quebra-cabeça formado pelo decorrer da narrativa e pelos desenhos de Eleanor.

Maria Semple: roteirista e autora

No Ato II do romance metamorfoseado em roteiro, para a introdução de novos personagens, há a inserção de uma singela, honesta e sombria graphic novel na tessitura narrativa. Eleanor tem problemas com datas e nomes, por isso, marcou, sem perceber, um almoço com um homem que foi seu estagiário quando ela trabalhava como diretora de animação de uma série de TV, a Looper Wash, série da qual ela foi responsável pela “estética violenta retrô supercolorida” (p. 45). Durante o almoço, a graphic novel veio à tona.

Para apresentar-nos a graphic novel, entra em cena o quadrinista Daniel Clowes, um dos nomes mais impactantes da cena indie/alternativa/underground dos quadrinhos. O gênio que nos brindou com Ghost World foi ficcionalizado por Maria Semple, e, no livro, o personagem que encarna é ele mesmo. Daniel Clowes indica Eleanor, em 2003, ao Prêmio Minerva, dedicado a quadrinistas, pelas ilustrações que ela fizera para “As Garotas Flood”, um apanhado de imagens com palavras que objetivavam capturar lembranças das memórias da infância de Eleanor e da irmã, Ivy. Esse foi o presente de casamento que Eleanor fizera para a irmã. Nas palavras de Daniel Clowes, o da Maria Semple, não o “real”:

Diferentemente de muitas histórias sobre infância, As Garotas Flood soa direta e necessária. Apesar de ser densa com detalhes da época, não é uma viagem nostálgica. O ponto de vista é sincero e nada sentimental. Eleanor Flood consegue difundir imagens agourentas e misteriosas com delicadeza, o que é um talento raro, e estou ansioso para ver mais do trabalho dela. (p. 79).

“As Garotas Flood” funciona, no romance, como uma espécie de framing device, isto é, uma moldura que apresenta elementos importantes da trama. Mais do que quadrinhos dentro de um romance, “As Garotas Flood”é parte essencial do engendramento estético de Hoje vai ser diferente. Antes do aparecimento da graphic novel na trama, a informação de que Eleanor tinha uma irmã não fora fornecida aos leitores. Mesmo depois de, por intermédio das ilustrações da história em quadrinhos em questão, tomarmos conhecimento desse fato, não temos, de imediato, a confirmação de sua vericidade.  Timby, após ler “As Garotas Flood”, comenta com a mãe: “você nunca me contou que tinha uma irmã” (p. 83), e obtém como resposta: “As Garotas Flood é uma obra que representa dois lados de mim – expliquei. – Foi uma experimentação artística. Só isso.” (p. 84). Alguns parágrafos depois, Eleanor, na função de narradora, não de mãe respondendo ao questionamento do filho, confirma: “Para ser clara: eu tenho uma irmã. O nome dela é Ivy” (p. 84).

É então que, com um toque de humor, desponta o processo de elaboração textual predominante no romance: a técnica da inundação, isto é, a autora lança no novelo textual um mar de informações, aparentemente aleatórias, e, então, temos de fazer a articulação entre o que está na superfície e o que está no fundo do mar de palavras. Entre os momentos de exposição de situações absurdas e divertidas, encontramos as pistas que constituem o grande conflito da trama.

Concentramo-nos, durante a maior parte do tempo, no desaparecimento do marido de Eleanor e nas situações que sugerem que ele a traía. Isso, no terceiro ato do romance, revela-se um McGuffin, artifício que, em um livro policial, chamamos de pista falsa. Todos os supostos indícios de que Joe traía a esposa são pistas falsas, criadas por uma faceta da personalidade de Eleanor que a faz cultivar um sentimento de culpa paralisante.  Os motivos que fizeram com que Eleanor se rendesse à inação formam a pedra fundamental dos conflitos que desenvolvem a trama do romance: o rompimento com a irmã. Assim, o que Eleanor chama de “O Truque”, para se referir ao seu modo de lidar com as situações, é, também, uma estratégia narrativa utilizada por Maria Semple para construir seu romance a partir de uma estruturação que se utiliza de elementos de um roteiro.

Sempre que estou em uma situação social com uma pessoa, especialmente quando há algo em jogo, minha ansiedade dispara. Falo depressa. Mudo de assunto de forma inesperada. Faço comentários chocantes. Mas, antes de ir longe demais, retrocedo e exponho minha vulnerabilidade. Se percebo que vou ser criticada, me antecipo e me critico.

(Um psicólogo chamou isso de O Truque. No meio da nossa primeira sessão, ele interrompeu meu blá blá blá e disse que eu tinha tanto medo de ser rejeitada que transformava qualquer interação numa ofensiva de vida ou morte. E que o fato de eu ser tão falastrona me tornava, na opinião dele, intratável. Ele me devolveu o cheque e me desejou sorte.) (p. 85).

Essa estratégia narrativa fica ainda mais interessante quando nos damos conta da irônica associação que se pode fazer entre o sobrenome da protagonista, Flood, e o traço de sua personalidade denominado “O Truque”. Flood é um termo que, em inglês, significa inundar, transbordar. Nas interações intermediadas pela internet, o termo ganhou o status  pejorativo, uma vez que cometer flood seria algo como postar informações sem sentido, sem propósito, com o objetivo de turvar a progressão de uma discussão. Além de serem estratégias utilizadas para desviar a atenção do foco principal, no livro de Maria Semple os momentos de flood  também podem ser entendidos como recursos que suavizam a tensão do que se narra. Por isso, sequências narrativas como a do professor de Poesia de Eleanor que trabalha vendendo peixe em uma Rede de Supermercados, são extremamente divertidas não apenas pela comicidade, mas também por brincarem com a ideia de que professor ganha tão pouco que não consegue viver apenas de lecionar, precisa de profissões adicionais.

Encadeadas entre os obstáculos que Eleanor enfrenta enquanto procura pelo marido, estão passagens narrativas que nos apresentam Ivy, sua irmã mais nova, e o marido, Bucky. Este exerce, no romance, a função de antagonista, já que foi um dos responsáveis pelas irmãs Flood terem se afastado. Esses fragmentos de memória fazem com que tomemos consciência, por meio de situações e personagens pitorescas, dignas de uma Sitcom, de como Ivy conheceu o marido e dos eventos que culminaram no seu afastamento de Eleanor.

(Os próximos parágrafos contêm spoilers, a saber: a revelação detalhada de um dos mistérios do livro. Se quiser manter o suspense, o que recomendo, vá direito para os dois últimos parágrafos).

Depois de Eleanor fazer uma peregrinação por Seattle em busca do  marido, no Ato III ela finalmente o encontra e o clímax do romance, mais do que divertido, é brilhantemente construído. Como passamos os dois primeiros atos procurando pistas de que Eleanor estava sendo traída, acabamos por deixar passar detalhes essenciais, que foram dispostos no texto pela estratégia da inundação/flood. Compramos a ideia de que Eleanor fala muita coisa desnecessária para ocultar o que realmente importa e deixamos passar a principal pista, a informação de que o Papa estaria em Seattle.

Essa informação é inserida no romance por meio de um dos recursos mais consistentes do roteiro: o foreshadowing, que é como se tivéssemos contato com a sombra de um objeto antes de olharmos diretamente para ele. Mostra-se, de maneira sintética, algo que será indispensável para o que acontecerá no clímax ou na resolução da trama. Porém, como isso é feito de modo sutil, muitas vezes a sombra aparece e desaparece em um piscar de olhos, o que impede que consigamos visualizá-la.  Isso acontece em Hoje vai ser diferente quando Eleanor, como quem faz comentários despretensiosos enquanto espera pelo ônibus, diz: “Eu me esqueci de comentar que o Papa ia passar pela cidade? Pois é. Para um tal de Dia Mundial da Juventude. (Não parece um evento inventado pelo Coringa para pegar o Robin?) Sua Santidade celebraria uma missa no estádio dos Seattle Mariners no sábado.” (p. 58).

Eleanor comprou o Seattle Times depois de não ter encontrado o marido no consultório. Ao constatar que ele não estava no local de trabalho, ela se lembrou de que, pela manhã – depois de levar Ioiô, a cadela, para passear e antes do café -,  encontrou seu cônjuge em uma posição inusitada: “Joe curvado sobre a mesa, a testa no jornal, os braços estendidos ao lado da cabeça, como se tivesse sido sentenciado à prisão”. (p. 18). Na hora, ela achou estranho, porque não era um comportamento típico do marido, mas não comentou: “Porta fechada. Fui soltar a coleira de Ioiô. Quando me ergui, meu marido abalado já havia se levantado e sumido no escritório. O que quer que fosse, ele não queria papo. Minha reação? Por mim, tudo bem”. (p. 19). Eleanor acabou se esquecendo disso e só retomou, na memória, a cena do marido curvado sobre a mesa quando não o encontrou no consultório e começou a pensar que estivesse sendo traída.

Ao comprar o jornal, ela procurava por alguma notícia que pudesse ser a responsável pelo comportamento estranho que o marido demonstrara naquela mamãe. Como Joe era ateu, e boa parte do jornal falava sobre o Papa, ela concluiu que não havia nada ali que pudesse tê-lo afetado. Entretanto, mais tarde, quando Eleanor encontrou o marido, ele estava no estádio, se preparando para, junto dos demais membros de sua congregação, cantar para o Papa.

Joe estava com a testa no jornal porque, ao ver a notícia do Papa, se deu conta de que teria de contar à esposa o que estava acontecendo com ele. É hilariante o momento em que Eleanor confronta o marido e ele fala: “Eu descobri a religião” (p. 236). Ela dá a única resposta possível para um ateia: “Como assim, religião? – perguntei. Religião do kettle bell? Religião do Radiohead?” (p. 236). Os acontecimentos que sucedem a revelação são ainda mais divertidos. Os diálogos, banhados por um clima nonsense e ritmados por uma trilha sonora feita a partir de um coral de pessoas cantando para o Papa, assumem um consistente tom humorístico e satírico.

Em Hoje vai ser diferente, ao contrário do que acontece em Cadê você, Bernadette?, depois do plot twist, isto é, da reviravolta, a narrativa não perde o ritmo. No seu livro mais recente, Maria Semple parece ter aperfeiçoado o que começou a fazer no anterior: a criação de um romance a partir do formato de um roteiro de Sitcom. De analogias, poemas, ironias e humor cítrico – com um cheiro irresistível, mas com um sabor, por vezes, amargo – se faz Hoje vai ser diferente e, no processo, a gente se desfaz: em sorrisos, lágrimas, desconforto, digressões e em aplausos.

Comecei este post falando sobre gêneros textuais híbridos. Ao longo do texto, tentei realçar alguns dos elementos característicos de Hoje vai ser diferente, romance escrito por  Maria Semple, que apresentam estruturação comum aos textos pertencentes ao gênero textual roteiro. A partir disso, cabe mencionar que, além de algumas regras de construção previamente determinadas, os gêneros textuais se definem, também, pela situação em que se realizam, o suporte ou canal em que são veiculados e pela instância discursiva a que estão vinculados. Roteiros são escritos para serem filmados, não expostos em livrarias, com capa e divulgação específicas. Por isso, escrever um romance a partir de uma escrita recheada de elementos que se encontram em roteiros, é um traço estilístico da autora, cujas escolhas de escrita realçam o caráter essencialmente híbrido e antropofágico do gênero romance.

 

 

Cadê você, Bernadette? (Maria Semple)

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Embora tenha ouvido falar sobre Cadê você, Bernadette?, de Maria Semple, em 2013 – época em que, por conhecer a Maria Semple como roteirista de Arrested Development e Mad About You, fiquei bastante interessada pelo livro – só voltei a pensar nele há alguns meses, por causa de Jane The Virgin. Jane, a protagonista da série, adora Cadê você, Bernadette?, sobre o qual comenta no primeiro episódio da terceira temporada. E, no décimo sexto episódio da terceira temporada, a série tem a participação especial de Maria Semple. No episódio, ela é a mediadora de um evento de que a Jane, que está para lançar o seu primeiro romance, participa. Assisti ao episódio há alguns dias e o incômodo de ainda não ter lido Cadê você, Bernadette? falou mais forte. Devorei o livro, em dois dias.

Não sei vocês, mas eu sou da época em que olhávamos para uma imagem cheia de detalhes, com curiosidades à vista, e ficávamos, por alguns minutos, às vezes, segundos, procurando por Wally. Cadê você, Bernadette? é como se tivéssemos 407 páginas, cada uma com um novo cenário, para procurarmos por Wally, ou melhor, por Bernadette.

Bernadette Fox tem cinquenta anos. É casada com Elgin Branch, um gênio da Microsoft, que concentra o trabalho na fase final do Samantha 2, o projeto da sua vida; tem uma filha de quinze anos, Bee, uma adolescente inteligente, e bastante esguia para a sua idade, isto se deve ao fato de ela ter nascido com uma condição cardíaca, passado por quatro cirurgias e, por isso, ter demorado um pouco mais para que seu corpo começasse a se desenvolver.  Bernadette não se dá muito bem com a maioria das pessoas, motivo pelo qual prefere a reclusão à socialização, o que lhe causou inúmeros problemas com as mães da escola em que sua filha estuda, pois elas, algumas em especial, faziam o possível para infernizar a vida da mãe de Bee. Por ter problemas para se relacionar com os outros, Bernadette contratou uma assistente virtual indiana para fazer a maioria das coisas por ela: comprar roupas, reservar lugares em restaurantes para a comemoração de datas importantes, entre outros.

Quando Bee entrega à mãe um boletim escolar irrepreensível, Bernadette se vê diante de uma situação estressante. Ela e o marido prometeram à filha que, se tirasse notas perfeitas do início ao fim do Ensino Fundamental, ela poderia pedir o que quisesse de presente. Bee pediu uma viagem com toda a família para a Antártida. Isso não seria estressante para uma pessoa que não sofresse de uma forte ansiedade social, o que não é o caso de Bernadette. Mesmo com receio, ela aceita a ideia da viagem, e pede à Manjula, sua assistente virtual, que comece a organizar tudo: passagens, roupas, e os demais detalhes. Porém, dois dias antes do Natal, ou seja, no dia da viagem, Bernadette desaparece.

Maria Semple em Jane The Virgin S03E16.

Cadê você Bernadette? é construído a partir de fragmentos. Nenhum fragmento está ali por acaso. A primeira parte dos fragmentos – e-mails, bilhetes, entre outros –  se ocupa de nos apresentar Bernadette.  Na primeira página do livro, somos informados de que ela desapareceu. Mas antes de sabermos mais detalhes sobre isso, contamos com Bernadette em cena. Conhecemos a personagem e suas limitações já de posse da informação de que ela desapareceu. Primeiro, Maria Semple faz com que nos importemos com Bernadette, nos afeiçoemos a ela. Depois, faz com que ela saia de cena, o que nos impulsiona a percorrer as páginas do livro na tentativa de encontrá-la. E, como guia na busca, temos Bee, a doce e inteligente filha de Bernadette, que, enquanto procura pela mãe, preenche algumas das lacunas deixadas pelos bilhetes, e-mails, cartas, fax e demais textos que constituem o romance.

Análogo à profissão de Bernadette, que é arquiteta, o romance parece ser feito com estruturas de encaixe. Quando Bernadette ainda vivia em Los Angeles – vinte anos antes de desaparecer –  e começava a criar, fazer sua mágica, as pessoas não compreendiam bem suas escolhas, seus movimentos, mas depois, quando ela encaixava as coisas, dava forma ao projeto, era possível  visualizar o todo. Assim acontece com o livro. No início, são fornecidas algumas pistas – fragmentos de informações, lançados de modo meio maluco – que não compreendemos bem, e elas são esclarecidas, retorcidas e modificadas ao longo do livro.

O estilo de escrita de Maria Semple, lapidado por uma vasta experiência como roteirista, nos brinda com algo bastante interessante: a narrativa em perspectiva. Somos apresentados às diversas versões das histórias vividas pelos personagens conforme há a alternância da voz narrativa. Até mesmo a versão de uma história, se contada duas vezes por uma mesma pessoa, sofre modificações drásticas na segunda vez em que é contada. E isso fica bastante evidente quando lemos os e-mails que Soo-Lin, assistente administrativa de Elgin Branch, trocava com Audrey Griffin – esta, apresentada como a mãe da Galer Street, escola em que Bee estudava, que mais implicava com Bernadette.

No caso de Soo-Lin, ainda somos presenteados com um momento de “expectativa x realidade” quando ela relata acontecimentos que envolvem Elgin Branch. Primeiro, ela nos conta o que gostaria que tivesse acontecido, mas assumimos que é o que aconteceu, e guardamos essa impressão durante muitas páginas. Depois, quando ela conta como as coisas realmente aconteceram, temos de reinterpretar diversas passagens do livro à luz das novas informações. É como se um material em estado sólido fosse aquecido até ficar líquido, se fundisse a outro e, depois de ser trabalhado, criasse uma nova estrutura.

A experiência de Maria Semple como roteirista de séries também acaba por ser extremamente útil para que possamos ligar as pontas aparentemente soltas do livro. Por exemplo, há um momento em que Bernadette descreve, em um e-mail, uma longa história de como Picolé, a cachorra, que pesa sessenta quilos e baba sem parar, de Bee, ficou presa em um dos armários antigos da casa em que ela, a filha e marido moravam. Em um primeiro momento, não damos muita atenção à história, mas depois, para lá da metade do livro, compreendemos a sua importância.

(O próximo parágrafo contém um grande spoiler, trata-se da revelação de um dos mistérios do livro. Se quiser manter o suspense, o que recomendo, não o leia, vá direito para o parágrafo seguinte).

Quando uma personagem esbarra em uma escada, que usa para ajudar Bernadette a sair pela janela do banheiro antes que  fosse internada em um manicômio, sabemos que aquela escada estava ali porque caiu no momento em que Bee subiu no telhado atrás da mãe, na ocasião em que resgataram a cachorra. Bee já estava dentro do armário e ouviu um barulho vindo de fora: “a escada havia caído e estava atirada sobre o gramado” (p. 51). A trama da cachorra presa no armário foi um artifício narrativo utilizado para colocar a escada no lugar em que ela deveria estar em um dos momentos de maior reviravolta da história.

A narrativa em perspectiva também é bastante interessante para compreendermos o que fez com que Bernadette ficasse cada vez mais reclusa. Na perspectiva narrativa da arquiteta, foi algo bastante doloroso, que ela chama de “Coisa Extremamente Horrorosa” (p.32). Conforme o marido de Bernadette, ela “teve um problema com uma casa que estava construindo e, abruptamente, retirou-se da cena arquitetônica de Los Angeles” (p.114). Ele menciona isso de modo tão corriqueiro, que parece fazer com que a leitura que Bernadette tem dos fatos seja exagerada.

Em uma outra vez que fala sobre o ocorrido, que foi um dos motivos pelos quais ela decidiu se mudar para Seattle, Bernadette conta uma história de infância. Ela ganhou um coelhinho. Algum tempo depois, viajou com os pais, e a empregada, que ficara responsável por cuidar do animal, roubou a prataria da casa e fugiu, deixando o coelhinho sem se alimentar. Quando voltaram de viagem, o animal era só unhas e pelos e, assim que Bernadette abriu a gaiola, “num espasmo de fúria, ele começou a arranhar meu rosto e pescoço. Eu ainda tenho as cicatrizes. Sem ninguém para cuidar dele, o coelho acabou regredindo à selvageria.” (p. 171). Ela conclui: “Foi o que aconteceu comigo em Seattle. Venha até mim, mesmo que seja trazendo amor, e eu vou te estraçalhar de arranhões”. (p.171).

O livro traz respostas convincentes e bem elaboradas para as questões que levanta. Tanto o paradeiro de Bernadette quanto o que fez com que ela abandonasse a profissão de arquiteta são explicados, em algum momento da narrativa. Entretanto, optei por, neste texto, falar o mínimo possível sobre os detalhes do enredo, para manter o suspense.

Em uma carta, Bernadette cita um físico que conheceu, vencedor do nobel, que não parava de falar sobre “universos paralelos”. Em linhas gerais, trata-se de “um conceito da física quântica que diz que tudo que pode acontecer está acontecendo em um infinito número de universos paralelos”. (p.400). A partir disso, estabeleci que, em um universo paralelo, a Coisa Extremamente Horrorosa não aconteceu, Bernadette continuou a trabalhar como arquiteta, e construiu casas excepcionais. Nesse cenário, Bernadette e Elgin não se mudaram para Seattle, e as outras coisas horríveis, que aconteceram antes do nascimento de Bee, não aconteceram. Assim, Bernadette não desapareceu, e Maria Semple escreveu outra história, não Cadê você, Bernadette?

Você teria um minutinho para ouvir a palavra de Jane The Virgin?

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janethevirginImagine que você se chama Jane Gloriana Villanueva (Gina Rodriguez),  tem 23 anos, está terminando a graduação em Inglês, sonha em ser escritora, mas teme não conseguir sobreviver às adversidades da profissão e, por isso, será professora. Por enquanto, você estuda e trabalha como garçonete, no Hotel Marbella. Familiar? Ainda tem mais. Você foi criada em uma família extremamente católica. Sua avó, venezuelana, te fez prometer que não faria sexo antes do casamento, porque essa era a vontade de Deus. Sua mãe, que tinha concepções de vida diferentes das de sua avó, queria ser cantora, e  batalhava por isso, enquanto se relacionava bastante com homens interessantes e não tão interessantes assim. Mas isso é questão de gosto, coisa que se discute, mas não neste post.

Xiomara (Andrea Navedo), mãe de Jane, era uma mulher que gostava de sexo, e não havia problema nisso, mas a mãe dela, Alba (Ivonne Coll), abuela de Jane, havia feito com que ela acreditasse que estava errada. O pai de Jane, bem, você não o conhece, e ela também não, pois sua mãe lhe disse que ele era do exército, e que havia ido embora. Na verdade, ela queria proteger Jane de uma verdade desconfortável. Aos dezesseis anos, Xiomara engravidou do seu namorado de escola. Ele queria que ela abortasse. Desde então, ela optou por deixá-lo fora da vida da filha. Afinal, ele não queria que ela existisse, não é, mesmo? Não, não é. As coisas não são tão simples, e definitivas, assim.

A avó de Jane, católica praticante, teve, como primeira reação, dizer à filha para abortar, mas ela não apenas não o fez como também não mencionou a sugestão à Jane. Ela não queria estragar a imagem que a filha tinha da avó, que, apesar de, nem sempre conseguir unir teoria e prática, era uma grande mulher. Xiomara  também o era, à sua maneira, e do jeito que sabia ser. As mulheres Villanuevas eram maravilhosas, fortes, decididas e unidas.

Nunca se esqueça disso, Jane, mesmo quando descobrir que sua mãe mentiu sobre seu pai. Você também passará por escolhas difíceis, e por situações complicadas. Você é virgem, e está grávida, pois foi inseminada por engano, e o filho não é do seu namorado, que em breve será seu noivo –  o policial Michael Cordero  (Brett Dier)-, é do milionário Rafael Solano (Justin Baldoni), um cara que te beijou há uns cinco anos, pegou seu telefone, e não te ligou. A esposa dele, Petra Solano (Yael Grobglas), viu que o casamento estava desmoronando, então decidiu jogar a última cartada: pediu para descongelar a amostra de esperma dele, e decidiu fazer a inseminação artificial.

Acontece que a médica que faria o procedimento era a irmã do Rafael, Luisa Alver (Yara Martinez), que após descobrir que a esposa a traia, ficou atordoada e, ao invés de fazer o exame de rotina em você e a inseminação na Petra, que estava no consultório ao lado, te inseminou com aquela que era a única amostra de esperma do irmão, que teve câncer e, antes de fazer o tratamento, decidiu congelar o esperma para que pudesse ter filhos no futuro.

Acho que é um bom resumo inicial, a partir daí, é com você. Não, não com Jane, com ela, também, mas especialmente com você que, acredito, nesse ponto já está morrendo de vontade de saber o que acontecerá com: Xiomara, Alba, Jane, Michael, Rafael, Petra e Rogélio De La Vega (Jaime Camil), o pai de Jane. Acredite, ele é um personagem sensacional, e indispensável para a série. Ou seria para a novela?

Jane The Virgin é uma série de comédia dramática que tem o estilo de uma telenovela (é necessário falar sobre Pastiche? Não, não é). Ela é uma adaptação de Juana La Virgen, telenovela venezuelana. E, como o formato da série é telenovelesco, podemos esperar por todos os clichês do gênero, mas não do jeito convencional. Eles são enredados na série de modo irônico, debochado e, claro, extremamente bem-humorado. Os rompantes dramáticos são bem encaixados e, melhor, são bem apresentados pelo narrador, que, sem sombra de dúvidas,  é um dos motivos pelos quais vale a pena assistir à série. A grande sacada do narrador está no fato de que ele antecipa as reações dos espectadores. Quando um momento de tensão se aproxima, ele começa a dizer que está preocupado e, ironicamente, quando a sequência revela algo perigoso, ele diz que não gosta de se gabar, mas estava certo. A identificação do telespectador com o narrador é imediata, e essencial para que se possa compreender a dinâmica da série, que tem muito mais.

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Apesar de Jane ser virgem, e acreditar na magia do amor, a série não fecha os olhos para outros pontos de vista.  Pelo contrário. A virgindade da protagonista é algo que, em certo ponto, se torna irrelevante, porque a série não gira em torno disso, antes ela se ocupa em mostrar os desdobramentos por que Jane passa no processo de se tornar uma escritora. Nos meandros desse processo estão muitos dos melhores momentos da série. É cativante ver os ensinamentos dos orientadores de Jane na Pós-graduação.

O primeiro orientador foca bastante em ajudá-la a trabalhar partes constituintes do processo criativo. Embora o gênero primordial de escrita escolhido pela Jane seja o Romance, ela parece ficar muito presa em sua própria perspectiva. A partir disso, seu orientador pede que ela escreva três contos: um de ficção histórica, para que ela possa sentir o tempo e o espaço; um de terror, para que ela possa trabalhar o elemento surpresa; e um de ficção científica, para que ela se permita ousar mais, quebrar as regras do gênero.

A segunda orientadora, feminista, faz com que a Jane repense seu estilo de escrita e, com isso, o telespectador é brindado com discussões bem elaboradas – divertidas, não maçantes – sobre o Teste de Bechel, por exemplo; especialmente quando o narrador começa a sublinhar se os momentos da série passam ou não no teste.

Eu disse, ali em cima, que ser escritora é o sonho dela, não disse? Bom, tem mais. Enquanto se torna escritora, ela também se torna mãe, namorada – a quem eu quero enganar? Não é óbvio que há um triângulo amoroso envolvendo Jane, Michael e Rafael? – , professora, entre outros. Voltemos ao ponto de ela se tornar mãe. Eu disse que ela acabou escolhendo ter o bebê? Não disse?  Mateo é uma criança adorável! E isso é tudo o que você saberá sobre ele, até começar a ver a série.

Enquanto Jane ainda não sabia se teria o bebê, discutiu-se sobre o aborto. Afinal, ela fora inseminada por engano. Embora a protagonista não tenha optado por abortar, foi interessante a série realçar que ela tinha uma opção. Embora pareça que eu estraguei a surpresa, você ainda não sabe se a Jane vai dar o bebê para Rafael, o pai, e Petra, a madrasta, criarem. Se eu contar todos os detalhes, para que você verá a série, não é, mesmo? Para conferir se o que eu falei é verdade? Eu ficaria ofendida, se não soubesse que narradores não são tão confiáveis assim.

Deixemos a desconfiança de lado para voltarmos a falar sobre a série. Jane The Virgin não é uma série que se vende como feminista, mas é mais certeira em discutir questões de gênero do que qualquer textão de Facebook. A série tem a sutileza de apresentar as opções e a coragem de escolher soluções para as quais muita gente torce o nariz. Jane The Virgin é leve ao abordar temas pesadíssimos. A ironia fina costura a trama; e o drama, mesmo cênico, parece natural. Como não ficar encantado pelo pai da Jane, o ator Rogelio De La Vega, uma versão moderna – paródica – do Zorro? Rogelio é extremamente vaidoso, e totalmente conectado: é usuário do Twitter, amigo de celebridades,  e, quando aparece, rouba a cena. Inclusive, ele está presente em um dos momentos mais geniais em que se discutem questões de gênero na série, o  décimo segundo episódio da segunda temporada.

Rogelio grava um episódio de uma telenovela que parece ter sido inspirada em Doctor Who: Tiago através do tempo. (Na verdade, é uma paródia de Quantum Leap, mas Doctor Who é uma referência mais conhecida, isto é, tem na Netflix, e isso, basicamente, é o que importa). O personagem dele, Tiago, viaja para a época do sufrágio. E a ironia é muito sutil, ele se exibe, como primeiro homem feminista, e diz que vai garantir que as mulheres tenham voto, que vai salvá-las. Momentos depois de terminar a gravação da cena, ele chama as atrizes: “venham sufragistas”, e diz que Xiomara, mãe de Jane, aceitou ser a Senhora De La Vega, ao que ela responde: “a não ser que eu queira manter o meu sobrenome”. Ele não gosta da resposta e depois aparece, ironicamente, a inscrição “primeiro homem feminista”, o que exibe uma crítica extremamente bem-humorada à ideia de que certos homens, embora tenham boas intenções e se coloquem como feministas, acabam por reforçar estereótipos de gênero.

Esse é o tom da série que, além de transitar pelas nuances dos romances policiais – crimes, traições, roubos, entre outros –  consegue nos ganhar nos mínimos detalhes, como o fato de os personagens principais estarem sempre com o celular por perto, e se comunicarem por mensagens em boa parte do tempo. Também há referências à cultura Pop, o que nos proporciona momentos divertidíssimos. Na segunda temporada há, por exemplo, menção a famosa regra dos relacionamentos no tempo atual: é necessário esperar o (a) namorado (a) para ver os episódios novos das séries. Por falar nisso, o que você está esperando para começar a ver Jane The Virgin?

 

 

O Sentido de um fim (Julian Barnes)

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osentidodeumfimEu sinto muito frio. Às vezes, tento travar uma disputa com a minha resistência e fico descalça no chão gelado. É um pequeno gesto de rebeldia, que logo abandono, pois o frio me vence e eu não apenas calço os chinelos como também me repreendo por ter pensado que conseguiria lidar melhor com o frio. De modo análogo, algumas lembranças, que enterramos bem fundo, às vezes começam a despontar e, mesmo que saibamos que há um motivo para elas terem estado soterradas por um bom tempo, insistimos em tirá-las de onde estavam e tentar lidar com elas.

É o que objetiva fazer Antony Webster, Tony, que, mais do que narrador-personagem, é narrador-protagonista de O Sentido de um fim, romance Julian Barnes, publicado no Brasil pela editora Rocco em 2013. No processo, embora tente calçar os sapatos e aquecer os pés, ele se dá conta de que não há mais sapatos, há apenas chão e, se quiser que os pés não congelem, precisa andar, sem parar, pelos caminhos da memória e passar muitas vezes pelo mesmo lugar, para se manter aquecido por algumas lembranças aproximadas que o tempo deformou em certeza (p.06).

Quando li o título O sentido de um fim, vencedor do Prêmio Man Booker 2011, acho que, por um certo condicionamento social, pensei imediatamente que se tratava do fim de um relacionamento amoroso. Ao começar a ler o livro, também pensei nisso durante um tempo, até perceber que o título era mais filosófico, e ambíguo, do que aparentava ser, o que, de certo modo, é um anúncio do que podemos encontrar na narrativa, sobre a qual não conseguirei falar sem spoilers. Uma vez que as inquietações sobre as quais pretendo falar estão intrinsecamente ligadas às particularidades do enredo da obra, acho interessante que as pessoas só terminem de ler este texto após a leitura do livro.

Ainda sobre o título, destaco a coincidência da tradução, literal, de The Sense Of an Ending que, intencionalmente ou não, acaba por brincar com a sonoridade da palavra “Fim” para, de antemão, nos dizer, de modo poético, filosófico e triste sobre o suicídio do personagem Adrian Finn, cuja pronúncia do sobrenome é “fim”. Mas esse é um comentário descompromissado, daqueles que a gente faz por se achar inteligente em fazer associações esdrúxulas ao invés de falar sobre o que realmente importa.

O cenário do narrado em O sentido de um fim começa a ser construído no ambiente escolar. Nessa etapa, a rememoração ganha contornos de um filme do  John Hughes co-dirigido por Richard Linklater. O tom da narrativa é nostálgico, constrangedor e, talvez, exatamente por isso, muito divertido. Somos, então, apresentados ao quarteto formado por Tony, Colin, Alex e Adrian. Este começou a estudar na mesma escola em que aqueles bem depois, mas, ao contrário de Colin e Alex, permaneceu na vida de Tony e na história que nos é contada.

A jornada rememorativa de Tony fica mais evidente quando ele recebe 500 libras, que lhes foram deixadas em testamento pela mãe de uma mulher que namorara há quatro décadas, e o aviso de que a falecida também lhe deixara outra coisa, a saber: o diário de Adrian, que suicidou aos 22 anos. Enquanto se articula para reaver o diário, que estava sob os cuidados de sua ex-namorada, Verônica Mary Ford, Tony nos brinda com fragmentos de memória que, ao serem retrabalhados, reescritos e reorganizados nos ajudam a construir uma história.

No tempo da enunciação de O Sentido de um fim,  Tony Webster está na casa dos sessenta anos, e busca elaborar acontecimentos de mais de quarenta anos, procura inferir ações passadas a partir de estados mentais do presente (p. 32). Apesar de alguns dados claros sobre a vida do protagonista, como: ter se casado, tido uma filha, se divorciado e ser aposentado, muitas das lembranças narradas saem propositalmente borradas pelo tempo. Ao tomar como ponto de partida a tinta dos borrões, o narrador nos convida para presenciar a reescrita das suas lembranças e, em última e principal análise, da sua vida.

Para isso, ele faz um exercício de rememoração que gira, quase sempre, em órbita do seu relacionamento com o amigo da época de colégio, Adrian Finn, e com ex-namorada com quem se envolveu nos primeiros anos da faculdade, Verônica Mary Ford. Pouco tempo após o rompimento do relacionamento com Tony, Verônica começou a namorar Adrian. À época, este enviou uma carta àquele, falando sobre o namoro e perguntando se isso afetaria a amizade deles. No primeiro momento, Tony não quis demonstrar o descontentamento, e mandou, como resposta, um cartão postal com palavras inofensivas.

Depois, ele decidiu se dizer como sentia e, dominado pela mágoa, enviou uma carta cheia de xingamentos: classificou a inteligência, a lógica, e a racionalidade de Adrian como pedantismo; falou maus bocados de Verônica e  sugeriu que Adrian perguntasse à mãe da namorada como ela realmente era. Tony não teve mais notícias dos dois até que, por intermédio dos amigos em comum que tivera com Adrian no Colégio, soube que ele cometera suicídio.

Na carta que escreveu para o encarregado do inquérito do suicídio que cometeria, Adrian deixou uma explicação filosófica, o que era condizente com o que ele acreditava. Para ele,

a vida é um presente concedido sem que a pessoa o tenha pedido; que a pessoa que pensa tem o dever filosófico de examinar tanto a natureza da vida quanto as condições que vêm com ela; e que se esta pessoa decide renunciar ao presente que ninguém pediu, ela tem o dever moral e humano de colocar em prática as consequências desta decisão. (p. 34).

A justificativa lógica para o suicídio de Adrian é passivamente aceita pelo narrador e, também, pelos leitores, até a segunda parte do livro, quando depois de quarenta anos de afastamento, Verônica acaba voltando à vida de Tony por se recusar a lhe entregar o diário de Adrian.  As informações, a conta-gotas, que Verônica fornece ao narrador, por intermédio de e-mails ou durante os ríspidos encontros que tiveram, começam a fazer com que ele questione a maneira com que se lembrava de muitas coisas e, mais do que isso, faz com que ele comece a questionar  suas certezas.

Quase no fim do livro, começam a surgir respostas para alguns dos questionamentos que perpassam a segunda parte da narrativa. Mas essas respostas são, em seguida, refutadas, por outras respostas que mais parecem novos questionamentos. Por exemplo, há um momento em que o narrador acredita que Verônica teve um filho de Adrian. Enquanto dura essa crença, ele começa a pensar que Adrian não suicidou por uma questão de coerência, mas por não ter conseguido lidar com a gravidez da namorada.

E essa certeza permanece durante algum tempo, até que Verônica diz que o homem cujo nome é homônimo ao de seu namorado, é seu irmão. Nesse ponto, tanto a memória do narrador quanto a nossa começa a construir outro caminho e, acredito, o mais próximo de de que poderemos chegar de uma suposta verdade. Tony conclui que, ter engravidado a mãe da namorada, foi o motivo real para o suicídio de Adrian.

Embora essa pareça ser a conclusão lógica, devemos levar em conta que o narrador não é confiável. Isso fica bem claro quando ele fala sobre como foi o término com Verônica: Por exemplo, “Depois que terminamos, ela dormiu comigo” pode ser facilmente substituído por “Depois que ela dormiu comigo, eu terminei com ela”. (p.32). A maneira com a qual ele dispõe as palavras, corresponde ao efeito de sentido que ele pretende causar. E, ao assumir que pode ter se comportado com Verônica como um garoto inexperiente, ele busca passar ao leitor a impressão de que pretende fazer um relato justo. O rearranjo das palavras pode alterar significativamente o sentido de um discurso e, no caso em questão,  pode alterar as memórias que costuram a narrativa.

Ao longo da trama, por diversas vezes, o narrador antes de fazer uma citação, pergunta: “quem foi que disse” o que ele mencionará a seguir. Quem foi que disse que a memória é o que nós achamos que tínhamos esquecido? E devia ser óbvio para nós que o tempo não age como um fixador, e sim como um solvente. (p. 43). Mais do que um marcador conversacional, o “quem foi que disse” é um recurso narrativo que cumpre o papel de reiterar que, no tribunal da verdade, a memória não é uma testemunha confiável, pois pode ser, parcial ou integralmente, dissolvida pelo tempo.

A parir disso, pode-se dizer que a proposital unificação que o narrador faz entre o conceito de  “História” e “história”, é mais  do que um indício de que, de certo modo, durante toda a sua vida, ele tentou se igualar intelectualmente à Adrian, que colocava em cheque a definição oficial de História ao plantar a semente da dúvida na objetividade do historiador; é um sinal de que ele pretende, tal qual um historiador, colocar a sua versão dos fatos diante de nós, leitores. Tony Webster é graduado em História. Logo, sua opção por emaranhar os sentidos de História e história não é aleatória, e uma estratégia narrativa adotada pelo autor para desenvolver o enredo.

Nessa linha de raciocínio, no primeiro parágrafo, há a construção de uma espécie de metáfora de antecipação ou, em uma leitura mais abrangente, poderíamos considerar o primeiro parágrafo como uma metonímia do enredo, uma parte que significa o todo, uma parte que alegoriza o todo. É como se tivéssemos um parágrafo-ementa. Mas só conseguimos compreendê-lo como tal após o término da leitura.

Eu me lembro, em ordem aleatória: — do brilho da face interna de um pulso; — do vapor subindo de uma pia molhada quando se joga alegremente uma frigideira quente lá dentro; — de gotas de esperma girando em volta de um ralo, antes de serem tragadas e descerem pelo cano de uma casa alta; — de um rio correndo sem sentido contra a corrente, o movimento das águas iluminado por meia dúzia de lanternas em perseguição; — de outro rio, largo e cinzento, a direção da sua corrente disfarçada por um vento forte agitando a superfície; — da água do banho já fria por trás de uma porta trancada. (p.06)

Quando somos surpreendidos pelos relatos finais do livro, sentimo-nos impelidos a revisitar o que o narrador contou. Assim, começamos a questionar o que, durante a leitura, aceitamos como normal. A começar pela imagem do brilho da face interna de um pulso. Isso sintetiza o início do relato do narrador, pois virar o relógio para a face interna do pulso era um ritual que ele e seus amigos da época do colégio faziam. A próxima lembrança elencada, a  do vapor subindo de uma pia molhada quando se joga alegremente uma frigideira quente lá dentro. (p.06) diz respeito a algo que só pensaremos com mais cuidado quase no fim da narrativa.

Antes de sabermos que a mãe de Verônica teve um caso com Adrian, encaramos como inocente a interação entre ela e Tony quando ele fora passar um fim de semana na casa dos pais da namorada. A lembrança da frigideira na pia faz referência ao momento em que a Senhora Ford preparava o café da manhã do namorado da filha. As gotas de esperma na pia também fazem referência ao fim de semana mencionado; trata-se de Tony ter se masturbado antes de ir dormir.

A menção  ao movimento das águas iluminado por meia dúzia de lanternas faz referência a uma das memórias a que o narrador mais volta, a de quando ele testemunhou a Serven bore, que  é um fenômeno que ocorre no Sudoeste da Inglaterra. Não compreendo todos os meandros do fenômeno, mas, grosso modo, é algo que acontece quando a maré se move para dentro do canal de Bristol, que tem o formato de um funil, e do estatuário do rio Serven, e a água se concentra em diversas ondas. Na primeira vez que o fato é contado, o narrador diz que estava sozinho. Posteriormente, ele diz que Verônica, estava com ele. Qual das duas versões realmente aconteceu, não se sabe.

E então, temos uma menção sutil a um dos acontecimentos mais rememorados ao longo da história: o suicídio de Adrian, que trancou o banheiro e se matou em uma banheira. É interessante notar que o narrador, no parágrafo seguinte, faz questão de pontuar que essa lembrança não é de algo que ele viu ou vivenciou, já que Adrian estava sozinho quando se matou – e, na época em que isso aconteceu, os dois já não se falavam mais -,  mas é algo que faz parte da sua história e, de certo modo, acaba por fazer parte da pessoa que ele se tornou: Este último não é algo que eu vi de verdade, mas o que você acaba lembrando nem sempre é a mesma coisa que viu. (p.06).

Com essa afirmação, é como se o narrador nos alertasse para o fato de que ao contar suas lembranças, ele pode criar coisas que não aconteceram, e também pode sublimar coisas que efetivamente aconteceram, mas não nos damos conta disso até que terminemos de ler o livro. Inicialmente, aceitamos a fala apenas como um indício de que a memória é falha, nada mais. No desconhecimento do todo, acabamos por encarar como simples a interpretação que o narrador faz do sorriso da mãe de Verônica.  Quando Tony conta de como se despediu dos pais da então namorada, após passar um fim de semana na casa deles, ressalta que, após o Senhor Ford fazer uma piada, e dizer à esposa para conferir as colheres, ela não respondeu, apenas sorriu para mim, quase como se compartilhássemos um segredo. (p. 23).

Outro fragmento aparentemente simples, mas que cobrimos com um sentido menos ingênuo após as peças do quebra-cabeça serem colocadas na mesa, o que acontece na segunda parte do livro, é  a maneira com a qual o narrador disse que a mãe de Verônica se despediu dele:

Quando o Sr. Ford engrenou o carro e acelerou, eu acenei e ela respondeu, embora não do jeito que as pessoas costumam fazer, com a palma da mão levantada, mas com uma espécie de gesto horizontal na altura da cintura. Eu desejei ter conversado mais com ela. (p. 23).

Depois de sabermos que a Senhora Ford dormiu com Adrian, acabamos por assumir que o narrador falar que ela se despediu dele não do jeito que as pessoas costumam fazer seja um eufemismo para dizer que ela estava se insinuando para ele e, desse modo, ele acaba por plantar algumas dúvidas no campo das incongruências da memória. Há a sugestão de que o narrador também poderia ter dormido com a mãe de Verônica. Também há a possibilidade de a sugestão de que a senhora Ford demonstrou interesse nele seja apenas um jeito  de dizer que não era tão surpreendente assim ela ter se relacionado sexualmente com Adrian, então namorado da filha, pois já havia tentado – ou conseguido? – fazê-lo com o namorado anterior de Verônica.

O caso de Adrian com a mãe da Verônica não se sustentaria apenas como uma consequência de, na carta raivosa que Tony mandou ao ex-amigo quando soube que ele e a ex-namorada estavam juntos, ter sugerido que a mãe da ex- sabia que ela não foi uma boa namorada. Para isso, é importante sugerir que a Senhora Ford já teve a intenção de se relacionar com o namorado anterior da filha.

E as coisas começam a se encaixar, efetivamente, nas últimas páginas do livro, quando Tony se vê diante da relevação de que a mãe do filho que ele pensou ser de Verônica com Adrian era a Senhora Ford. A descoberta nos leva a compreender outro episódio. Quando, em um dos e-mails que troca com Tony, Verônica diz que o pai começou a beber muito e faleceu há 35 anos, apenas cinco depois da morte de Adrian, não dei muita atenção. Mas quando o narrador nos diz que a mãe da Verônica teve um filho com Adrian há quarenta anos, a informação começa a ter uma razão de ser. Após a traição, que resultou numa gravidez, o marido começou a beber desenfreadamente, o que danificou o esôfago e causou sua morte.

Ainda no campo das dúvidas implantadas pela descoberta do provável caso da Senhora Ford com Adrian, ganha contornos mais acentuados o narrador ter falado que a sua primeira vez não aconteceu com Verônica.

Eu não era exatamente virgem, caso você esteja se perguntando. Contando com a escola e a universidade, eu tive alguns episódios instrutivos, cuja excitação foi maior do que a marca que eles deixaram. (p.18).

Assim, o conselho da Senhora Ford: não deixe Verônica fazer gato e sapato de você (p.22), acaba por instaurar uma ambiguidade discursiva: ou ela apenas estava preocupada com aquele rapaz inocente ou ela estava desqualificando a filha por outro motivo. Da primeira vez em que o episódio foi mencionado, achei que tivesse sido um comentário normal, coisa que um adulto diria a um jovem inexperiente. E, àquela altura, também não duvidei de que Verônica, o pai e o irmão haviam saído enquanto sozinhos o namorado ainda dormia sob a desculpa de que ele não gostava de acordar cedo. A Senhora Ford disse que essa foi a justificativa de Verônica para não acordá-lo. Mas teria, mesmo, Verônica falado isso?

Além disso, a expressão “episódios instrutivos” não se encaixa no campo semântico das expressões que, geralmente, são usadas para se referir ao fato de um jovem fazer sexo com uma mulher mais velha? Talvez a minha interpretação esteja pendendo para esse lado por eu querer acreditar que o narrador não mencionaria a frigideira na pia e os espermas na pia sem uma maior pretensão. E, aqui, não acredito que a pretensão seja a de afirmar que Tony e a Senhora Ford tenham se relacionado sexualmente, mas sim a de sugerir que isso seria possível. Afinal, fazer literatura não é exatamente se debruçar sobre o que efetivamente acontece, mas trabalhar a partir do que pode acontecer. E fazer o leitor acreditar nisso é indispensável para que o pacto ficcional efetivamente aconteça.

Apesar de inquietante, o fim do livro sugere uma resolução, ainda que não pacífica, para as principais questões apresentadas. Mas não dá para esperar a afirmação de uma verdade. Afinal, a verdade, tal qual a memória, pode ser uma coisa feita de retalhos e remendos. Assim, o modo como Adrian definiu “História” quando estava no colégio, também é útil para definirmos O sentido de um fim: é uma narrativa  fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação. (p.14).

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