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Qual é a sua profissão? (Gillian Flynn)

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qual é a sua profissãoEu não parei de bater punhetas porque não era boa nisso. Parei de bater punhetas porque era a melhor. (p.65).

Não é todo o mundo que inicia um texto com uma frase assim  e tem a certeza de que, depois dela, o leitor não abandonará o texto. Não é todo o mundo que pode colocar uma frase dessas como início de uma novela e fazer com que o resto dê certo. Não é todo o mundo, é a Gillian Flynn, autora que conheci há alguns anos, quando li o maravilhoso Garota Exemplar. Desde então, procuro devorar toda e qualquer coisa escrita por ela. Quase toda. Sempre deixo algo “por ler” reservado para os os momentos em que a sensação de “não tenho nada para ler” decidir me atingir.

Qual é a sua profissão? foi publicado originalmente em uma coletânea, organizada por George R.R. Martin e Gardner Dozois, que, no Brasil, saiu com o título: O Príncipe de Westeros e outras histórias. Mas eu fiquei sabendo da existência da novela por causa deste post. (Obrigada, Anica!).

A novela, narrada em primeira pessoa, tem início com uma breve recapitulação da história da narradora, que cresceu pedindo esmolas e acabou por trabalhar batendo punheta para os mais diversos homens, vindos dos mais inusitados lugares, nos fundos de um lugar chamado “Palmas Espirituais”.  No tempo em que a novela se inicia, a narradora trabalha como vidente, pois adquirira LER, o que a impossibilitara de exercer o trabalho anterior com eficiência. Entretanto, ela ainda atende alguns dos seus clientes preferidos; um deles, com o qual discutia livros de terror.

Foi por causa da  profissão de vidente que ela conheceu Susan Burke, personagem responsável por transportar o leitor do ambiente cômico: local de trabalho de uma vidente que bate punheta nas horas vagas,  para o cenário de um filme de terror: uma casa antiga e que, segundo a dona, era mal-assombrada. Susan procurou a vidente por acreditar que a casa em que morava com o filho e o enteado estava influenciando, negativamente, o comportamento do enteado. Miles, de 15 anos, tinha um comportamento estranho que, segundo ela, se intensificou após a família ter se mudado para a mansão Carterhook.  O nome da mansão é bastante sugestivo. O “hook” nos remete à sonoridade de “look” que, por sua vez, nos conduz ao “Hotel Overlook”, de O iluminado, um dos clássicos do terror.

Ao chegar à casa de Susan, a narradora –  consciente de que era uma fraude, mas ávida por estender seu mercado de trabalho para o campo imobiliário –  que já havia arquitetado um plano para fazer uma “purificação” da mansão em doze meses, é surpreendida pela decoração vitoriana da casa.

Observei a casa. Ela me observou de volta, através de janelas longas e malignas, tão altas que uma criança poderia ficar de pé no peitoril. E havia uma. Vi o comprimento de seu corpo magro: calça cinza, suéter preto, gravata marrom perfeitamente amarrada ao pescoço. Um emaranhado de cabelos escuros cobrindo os olhos. Em seguida, um borrão súbito, ele saltou e desapareceu por trás das pesadas cortinas de brocado. (p.73)

Pode-se fazer uma analogia entre a pessoa que observava a narradora da janela – Miles – e o texto ficcional. A pessoa que aparece na janela é o texto visível, é o que impulsiona o leitor a se embrenhar texto adentro. Ele só faz o movimento de entrar no texto porque a pessoa desce da janela e desaparece. Fazer com que o personagem desça da janela é uma estratégia narrativa que não apenas instiga o leitor a perseguir a suposta pessoa como a colocar em cheque a sua capacidade de observação (realmente tinha alguém na janela?).  A partir desse momento, o leitor sente que precisa entrar na casa-texto.

A casa era composta por uma decoração mista: vitoriana por fora, moderna por dentro. Quando o leitor acompanha a narradora e entra na casa, ou seja, no texto, espera ver elementos que corroborem a caracterização externa, mas não é o que vê. Dentro da casa, a arquitetura moderna tenta extirpar os principais traços vitorianos da mansão.

A constituição da novela é perpassada pelo duplo, como a própria decoração da mansão sugere. É notável, e paradoxal, a descrença da vidente em coisas sobrenaturais e a crença de Susan no fato de que a casa tinha alguma coisa que afetava o comportamento do enteado. A vidente acreditava que o comportamento agressivo e imprudente de Miles nada mais era do que a manifestação das agruras por que passam os adolescentes. Já a dona da casa acreditava que o enteado estava determinado a matá-la e também a matar o irmão mais novo, a quem já havia ameaçado.

A novela começa a engrenar, efetivamente, quando a narradora, por intermédio de uma pesquisa na internet, descobre que a mansão Carterhook antes de ser a residência da família Burke, fora palco de acontecimentos sobrenaturais que culminaram com o sangrento extermínio de uma família. Então acontece a suspensão da descrença, o que é essencial para que todas as pistas dadas anteriormente comecem, efetivamente, a fazer sentido. Entre as pistas, pode-se destacar a recorrência do uso de verbos no Imperativo, tão característicos de livros e filmes de terror. Sempre aparecem personagens para dizer que as pessoas não devem ou devem fazer algo, e se os avisos são ignorados, as consequências costumam ser desastrosas.

— Eu espero que você saia e não volte. Para o seu bem. — Ele sorriu para nós duas. — Este é um assunto de família. Não concorda, mamãe? (p.76 – grifo meu).

Verbos no Imperativo denotam ordens, mas também avisos. É como se a exortação fosse uma estratégia textual de que o autor dispõe para dizer ao personagem: Cuidado, você é personagem de um Thriller e vai se dar mal. E o leitor de Thriller espera, ansiosamente, pelo momento em que os protagonistas ignorarão os avisos, porque essa transgressão é indispensável para o desenrolar da história.

A partir do momento em que a narradora começa a acreditar que a casa está mal-assombrada e decide sair correndo daquele lugar, a novela tem a sua primeira reviravolta e, quando começa-se a digeri-la, tem outra. O texto faz o seguinte movimento: quando o leitor acredita que a autora conduz a narrativa em uma direção, ela a desvia para outra. E se ele acredita que não há a possibilidade de uma história que começa com uma mulher batendo punheta e passa para uma mansão mal-assombrada funcionar, sugiro que ele acredite em Gillian Flynn. Eu acredito.

 

 

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