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Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu (Jenny Lawson)

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vamosfazerdecontaqueissonuncaaconteceu.jpgSe você acha que teve uma infância interessante, experimente ter um pai taxidermista que acordou você, que, à época, tinha oito anos, e sua irmã, que tinha seis, no meio da noite, para lhes apresentar a um esquilo mágico, isto é, um esquilo morto que foi empalhado e virou um fantoche. Se você acha que teve uma infância interessante, experimente ter como um dos casos famosos de sua família a história de um tio-avô que matou a esposa com um prego na nuca e a enterrou no quintal de casa. Essa não é a história toda: ele só confessou isso no leito de morte e os membros da família desenterraram a falecida para averiguarem a veracidade da história (sim, só para isso, não para comunicar o fato às autoridades) que, depois de confirmada (o prego estava lá), voltou para o túmulo, como a falecida. Se você acha sua vida interessante, conheça um pouco da vida de Jenny Lawson, que nos conta histórias (quase) reais de sua vida surreal em Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu.

Jenny Lawson é uma jornalista, escritora e blogueira americana que publicou três livros. Eu comecei a conhecer a sua história in medias res, isto é, no meio das coisas (no caso em questão, no livro do meio), porque o primeiro dos seus livros que li é o segundo, o maravilhoso Alucinadamente Feliz. Por causa da ordem que adotei para a leitura dos livros dessa irreverente escritora, eu fiquei bastante frustrada quando descobri que a capa da edição brasileira de Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu não tinha um rato morto na capa. História que conheci enquanto lia Alucinadamente Feliz, no trecho em que ela fala sobre o almoço de pré-lançamento do seu primeiro livro (Jenny Lawson me deu muitos spoilers! Mas ela não tem culpa se eu não li os livros na ordem em que eles foram escritos. Essa culpa é do mercado editorial brasileiro!):

O livro tem um tipo de humor negro, e a capa exibe um ratinho empalhado vestido de Hamlet e segurando a caveira de outro rato morto como se fosse um Yorick  minúsculo. Eu estava brincando quando pedi à editora para colocar meu rato morto, Hamlet von Schnitzel, na capa, mas não conseguimos encontrar nenhuma ideia melhor para um livro tão estranho, e era por isso que eu pedia desculpas o tempo todo para a equipe de marketing por fazê-los vender um produto com um roedor morto na capa.

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O que dizer desse ratinho morto que mal conheço e já considero pacas?

Mas, apesar da frustração de não ter conhecido o rato shakespeariano empalhado, decidi ler o livro, e não me arrependi. Se não tivesse superado a adversidade inicial, eu não teria conhecido a história de Jenkins, um peru que perseguia Jenny até a escola. No dia em que seu pai chegou com Jenkins e os outros perus – que ele insistia em chamar de codornas – em casa, Jenny já sabia que isso não terminaria bem, mas ela não imaginou que acabaria com seu pai ajoelhado na escola limpando o pátio  que Jenkins e familiares encheram de cocô. Dei boas gargalhadas e quase me senti culpada por ter comido peru no Natal. Conforta-me saber que a linhagem de Jenkins se extinguiu há muito tempo, e em outro país, o que significa que não fui responsável por isso. Ainda bem!

Jenny Lawson, por outro lado, foi responsável por coisas inimagináveis, como por exemplo: não apenas ter lembranças aterradoras do Ensino Médio, como toda pessoa normal –  isto é, pessoa que não era popular ou que era a gótica dos livros – tem, mas ter como seu momento mais marcante dessa época escolar a lembrança de ter colocado o braço na vagina de uma vaca. Ela também foi responsável por criar um livro de memórias que não é um simples livro autobiográfico. É como se os seus textos fossem filhos biológicos de uma crônica e um ensaio, criados pelo roteiro de uma sitcom publicada em um blogue (eu não sei quando parei de escrever blog e comecei a escrever “blogue”, mas tenho certeza de que foi uma das coisas horríveis que aconteceram comigo nos últimos tempos).

Jenny, durante a infância, usava sapatos de saco de pão, para se proteger do frio. Ela não sabia usar talheres (eu não sei, e me sinto extremamente desconfortável em situações sociais em que o uso correto dos talheres é exigido. Quer dizer, eu me sentiria, se não fosse pobre e precisasse participar de eventos sociais em que se exige o uso correto dos talheres) e ficou bastante desconfortável ao descobrir que tinha algumas almofadas no sofá da mãe do seu namorado, que acabou se tornando seu marido, nas quais não se deveria sentar. (Ninguém me ensina essas coisas!). A visita foi tão complicada que eles foram embora antes do jantar (sim, ela se perguntou o porquê de ele ter passado tanto tempo tentando lhe ensinar a usar os talheres se eles foram embora antes do jantar) e pararam em uma sorveteria.

Na volta, paramos numa sorveteria, o que foi um alívio, pois eles fornecem somente um conjunto de talheres, a não ser que você peça o sundae especial, pois nesse caso se  recebe uma colher vermelha bem comprida para que se possa alcançar a calda no fundo do copo. E mesmo nesse caso tem um desenho de uma casquinha de sorvete na ponta da colher, caso alguém fique confuso quanto ao seu uso. Foi então que comecei a desabafar sobre como a sorveteria é melhor do que restaurantes chiques, e Victor olhou para mim fixamente, fascinado, como se estivesse completamente surpreso por ninguém ter pensado nisso antes, ou como se estivesse se perguntando o que havia de errado comigo. Era um olhar que ele tinha aperfeiçoado ao longo do último ano juntos.
Respirei fundo e me inclinei para frente e olhei para ele, impiedosamente. “Olha. Isso somos nós. Eu sou a colher de sorvete. Você é a colher de escargot. É por isso que nunca vai dar certo.”
Victor fez uma pausa e então se inclinou na minha direção por cima da mesa e sussurrou: “Garfo”, e eu disse: “Não entendi… É assim que vocês, ricos, xingam?” Ele deu um sorriso torto, como se estivesse tentando conter o riso, e disse: “Não. Escargot se come com garfo. Não com uma colher.” E eu gritei: “Exatamente! É exatamente disso que estou falando”. Ele riu e disse: “Não me importo se você não sabe o que é um garfo de escargot. Acho adorável que não saiba. E você vai aprender tudo isso. Ou não.

Mas não importa, porque eu gosto de colheres de sorvete.” Dei um sorriso hesitante, porque ele falou com tanta confiança que era difícil não acreditar nele, apesar de suspeitar que ele só estava sendo legal porque não queria que uma garota que nem sabia usar um sofá corretamente terminasse com ele. Essa é praticamente a pior maneira de todas para alguém terminar com você.

Eu achei isso muito fofo. Constrangedor, mas o Victor fez com que parecesse fofo. Eu ficaria extremamente constrangida numa situação dessas, porque, honestamente, eu cometeria todos os equívocos que a Jenny cometeu (com ênfase para o fato de não saber que escargot se come com garfo. Eu não sei nem o que é escargot, meu Deus do céu!) e outros mais. Mas o Victor faz com que as peculiaridades da Jenny pareçam coisas pequenas ao invés de empecilhos. Não se pode esperar menos de alguém que fez o pedido de casamento que ele fez.  Victor pediu a Jenny em casamento de um jeito que me lembrou  Sintonia de Amor. Não, o pedido não foi feito no Empire State Building, mas na rádio, por intermédio de uma gravação. Pensando bem, embora a Jenny tenha falado que quando conheceu o Victor ele parecia o Neil Patrick Harris, acho que, pelo menos em uma das fotos que vi no livro, ele me lembra, bastante, o Tom Hanks em Sintonia de Amor.

Mas então notei que ele estava olhando para mim e me dando um sorriso torto e escutei o Victor no programa da rádio conversar com o outro DJ sobre uma garota que ele havia conhecido e por quem estava apaixonado. Ele contou que no final de cada turno tocava “When We Dance”, do Sting, como sua despedida e como um “eu te amo” silencioso para ela. Aí ele disse que havia se apaixonado tanto por ela que iria pedi-la em casamento ali mesmo. Na maldita rádio.

A Jenny Lawson é como se fosse a minha melhor amiga, tirando o fato de que a gente ainda não se conheceu. Mas esse é um detalhe irrelevante. Ela também fica perdida na cidade em que mora. Ela também não entende muito bem as coisas que o GPS fala. Ela também lida melhor com referências não canônicas do que com a indicação correta das ruas. Mas ela dirige, o que eu não sei quando conseguirei fazer, já que tenho pavor de carro. Mas ela tem transtorno de ansiedade generalizada. E eu acabei de me dar conta de que isso não é uma competição.

E ninguém ousaria competir com a Jenny (somos amigas, eu já ouso chamá-la apenas pelo primeiro nome. Esse é um caminho sem volta. A verdade é que eu estou ditando o que estou escrevendo, e sempre fico perdida quando chega no sobrenome. Acho que a pronúncia seja algo como: “Lóssen”) quando se trata de ter vivido as coisas mais absurdas e não intencionalmente engraçadas, e de escrever não ficção enrolada em um papel de presente que grita: FICÇÃO! É exatamente por isso que sugiro que vocês fechem esta aba e abram a de uma loja online na qual possam comprar Vamos fazer de conta que isso nunca aconteceu e se deliciarem com a leitura enquanto vamos fazer de conta que eu nunca escrevi esse texto.

Alucinadamente Feliz (Jenny Lawson)

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alucinadamentefeliz“Este livro mudou a minha vida”. É o que diria sobre Alucinadamente Feliz uma pessoa absolutamente normal, ou ficcional, como aquelas pessoas que fazem propagandas de produtos milagrosos que fizeram com que suas rugas e cicatrizes desaparecessem (que horror! Eu não sei o que faria se não tivesse mais as minhas cicatrizes e minhas rugas para contar durante um momento de tédio profundo). Essas pessoas são encontradas, preferencialmente, naquelas propagandas duvidosas que infestam o feed de notícias do Facebook.

Alucinadamente Feliz é o segundo dos três livros que a jornalista, blogueira e escritora, Jenny Lawson, lançou. E eu não sou uma daquelas pessoas das propagandas estranhas que aparecem no Facebook, nem sou uma pessoa absolutamente normal (por isso, decidi começar pelo segundo livro da autora, o que me exime de tecer quaisquer comentários sobre o primeiro livro e, obviamente, sobre o terceiro. Sem spoilers, por favor!).

Prefiro acreditar que sou uma pessoa alucinadamente feliz, ou neurótica, o que também me deixa feliz, já que a outra opção seria:  “sou psicótica” (eu entendi, muito, o susto que a Jenny tomou quando sua médica lhe receitou um antipsicótico, mas não pelos motivos que se pode imaginar, embora por todos os outros que nossa mente é limitada demais para criar). Neurótica porque, enquanto lia o livro, eu me vi, parcial ou integralmente, em muitas das excentricidades narradas pela Jenny Lawson, o que fez com que eu me sentisse menos sozinha, mas também menos normal, graças a Deus!

E isso me leva a acreditar que poucas frases me descrevem tão bem quanto uma que Victor, marido de Jenny, lhe disse durante uma discussão: “é como se você fosse alérgica a fazer sentido”. Não sei se a frase se aplica a ela, mas se aplica a mim. Eu sou muito alérgica a fazer sentido. E uma prova disso é que fiquei em êxtase por encontrar alguém que, assim como eu, além de não gostar de sair de casa, também se sinta confortável ao fazer analogias ruins (que eu acho deliciosas!) com comida.

Nunca tive um surto psicótico. Raramente deliro. Nunca alucinei por outro motivo que não o uso exagerado de algum medicamento que nem deveria ter tomado. Só tenho problemas. Porém de uma forma que me faz ser… eu. Meus remédios não me definem. Não sou psicótica. Não sou perigosa. Os remédios são só uma pitada de sal. Um pouco de tempero para a vida, se preferir assim. Suas batatas assadas ficariam bem sem eles, mas qualquer um diria que aquela pitada de sal pode fazer toda a diferença. Eu sou as suas batatas. E fico melhor com sal. Talvez essa analogia seja ruim. (p. 52).

O subtítulo de Alucinadamente Feliz é: “um livro engraçado sobre coisas horríveis”.  E eu acho que isso já dá o tom do que virá a seguir, o que é reforçado pelos depoimentos fictícios – ah, como eu amo pastiche! – de personalidades sobre o livro. Isso situa a obra no campo do não compromisso com nada que não seja necessário para o bom desenvolvimento da narrativa. No início do livro, Jenny explica que o título dele veio de algo que salvou a sua vida. Ela sofre de depressão e outras coisas mais, e tinha passado seis meses em um poço do qual não conseguia sair. Então, abriu o blogue e escreveu um post no qual disse:

De modo geral, os últimos seis meses têm sido uma tragédia vitoriana. Hoje meu marido, Victor, me entregou uma carta informando a morte inesperada de mais um amigo. Talvez você imagine que isso vai me lançar numa espiral de ansiolíticos e músicas da Regina Spektor, mas não. Não vai. Estou de saco cheio da tristeza e não sei qual é o problema do universo, mas pra mim JÁ CHEGA. VOU SER ALUCINADAMENTE FELIZ, SÓ DE RAIVA.

Segundo a autora, poucas horas depois da publicação do post, #FURIOUSLYHAPPY [#ALUCINADAMENTEFELIZ] era um dos assuntos mais comentados do Twitter, o que foi o início de um movimento que não para de crescer. Acho que todas as vezes que alguém lê Alucinadamente Feliz, o movimento ganha mais um adepto. Sei que me ganhou, e eu nem sei se tenho algum transtorno mental (segundo a Jenny, todos nós temos), só sei que não tenho nenhum transtorno mental diagnosticado. De qualquer modo, nos momentos muito ruins, eu me lembro de que viverei momentos muito bons, e isso me dá algum alento, como me deu um quentinho no coração ler o modo com que Jenny explicou a possibilidade de alguém ser alucinadamente feliz:

Costumo pensar que quem sofre de depressão grave desenvolve um poço tão profundo de emoções extremas que pode conseguir experimentar a alegria num nível que também jamais poderia ser entendido pelas pessoas “normais”, e é disso que estou falando com ALUCINADAMENTE FELIZ. É sobre pegar os momentos em que as coisas vão bem e torná-las fantásticas, porque são esses momentos que nos fazem quem somos e que vamos levar para a batalha quando nossos cérebros declaram guerra contra a nossa própria existência. É a diferença entre “sobreviver” e “viver”. É a diferença entre “tomar um banho” e “ensinar o macaco mordomo a lavar seu cabelo”. É a diferença entre ser “são” e ser “alucinadamente feliz”.

Depois dessa explicação, eu tive a certeza de que não havia nenhum motivo para que eu preferisse ser sã a ser alucinadamente feliz (além disso, a Jenny Lawson é alucinadamente feliz e é amiga do Neil Gaiman! NEIL GAIMAN! Não me perguntem qual é a relação de causa consequência entre essas duas coisas. Ela não existe. O que eu quis dizer é que ser alucinadamente feliz não impede ninguém de ter uma vida fantástica e amigos incríveis.). Não sei se isso é bom ou ruim, mas sei que é ruim não falar sobre os sentimentos, então eu acabo falando coisas que fazem com que os outros fiquem desconfortáveis. Acho que a Jenny também faz isso. Na verdade, parte do trabalho dela é fazer isso, e ela o faz com muito bom humor, mas nem por isso deixa de fazê-lo de um modo tocante. Chorei sem pudor nas partes do livro em que ela tenta, por meio de algumas analogias, explicar o que é a depressão.

Depressão é… é como quando você usa a barra de rolagem meticulosamente para subir centenas de páginas de um documento no computador procurando um parágrafo específico que precisa consertar, e então tenta digitar, mas é levado automaticamente de volta para o fim do documento porque se esqueceu de colocar o cursor onde queria digitar. Aí você bate com a cabeça na mesa, porque esqueceu o lugar onde estava, e aí sua chefe entra enquanto você está com a cabeça sobre a mesa, e quando vê os sapatos dela atrás de você diz na mesma hora: “Não estou dormindo. Eu só estava batendo com a cabeça na mesa porque fiz uma merda aqui.”

[…]

Espere. Não. Não é isso. A depressão é como… quando você não tem uma tesoura para cortar aquela amarra de segurança de plástico grosso da tesoura que acabou de comprar porque não conseguia encontrar nenhuma outra. E aí você diz “Foda-se” e tenta usar todas as outras coisas do mundo para soltar a tesoura, mas tudo que tem são facas de plástico para manteiga e elas não ajudam em nada, então você se vê de pé na cozinha segurando uma tesoura que não consegue usar porque não encontra uma tesoura, e aí fica frustrada e joga a tesoura na lixeira e dorme no sofá por uma semana. A depressão é assim.

Embora tenha momentos de partir o coração, Alucinadamente Feliz prefere costurar as feridas em que coloca o dedo com fios de humor. Por isso, em algumas partes, a narrativa me lembrava, muito, um roteiro feito sob medida para a Lorelai de Gilmore Girls (eu preciso escrever que é de Gilmore Girls, embora, racionalmente, saiba que ela é a única Lorelai que a maioria das pessoas que lerá este texto conhece. Deve ser por coisas assim que as pessoas dizem que eu sou a Lorelai brasileira, e que eu, enquanto lia Alucinadamente Feliz me identifiquei muito com a Jenny Lawson), como na parte em que a Jenny cismou que queria um gato que se chamasse O Presidente para poder falar coisas como: “O Presidente não tira a bunda do meu teclado”, ou “O Presidente acabou de vomitar no tapete novo”, ou “Gosto de dormir com O Presidente, mas por que sempre acordo com a bunda dele na minha cara?”. Eu consigo imaginar a Lorelai falando isso. E só de imaginar, começo a rir. (Nota mental: rir sozinha não é um indício de sanidade).

Alucinadamente Feliz é um livro de memórias. Então, nele, Jenny Lawson falou a partir da sua experiência de pessoa com transtornos mentais o que costuma fazer para lidar com a depressão, mas deixou bem claro que cada pessoa é diferente e lida como pode com isso. Gostei muito das sugestões mas, de modo especial, adorei a prova da colher (não estou falando da Teoria da colher, que também é fenomenal e ganhou um lugarzinho no meu coração), que seria um ótimo manual de como não chafurdar na merda alheia, se fosse possível fazer um manual sobre isso, e se fosse possível não pisar, mesmo que com a pontinha do chinelo, no resto de merda alheia que ficou no asfalto.

Ela estava em uma festa em que começaram a servir sopa em colher. O garçom entregava a colher com  a sopa e sumia. As pessoas ficavam sem saber o que fazer com a colher. Elas estavam elegantíssimas, com uma incômoda colher na mão, ou no chão, ou  ou em qualquer lugar aleatório. Destacou-se, nesse cenário, uma mulher que lançou a colher na piscina.

Vi quando uma mulher olhou ao redor cheia de expectativa por um minuto e,  percebendo que ninguém voltaria para pegar a colher, deu de ombros e a jogou na piscina. Isso me pareceu babaca, mas não dá para deixar de respeitar esse nível de não-dou-a-mínima-para-talheres-que-nem-são-meus. Com aquele único arremesso de colher, ela disse a todo mundo na festa: “Se vocês não vão cuidar das suas coisas, então não contem comigo para me responsabilizar por essas merdas.”

Foi nesse momento que decidi que adorava aquela mulher e a sua atitude. Eu provavelmente não me sentiria assim se fosse um recém-nascido abandonado na porta dela, mas eu não era. Eu era uma mulher que havia acabado de ver outra mulher passar na prova da colher, uma prova que eu nem sabia que existia e para a qual ninguém mais havia estudado. E foi aí que prometi nunca assumir responsabilidade pela colher / atitude / estupidez de outras pessoas, porque, vamos ser francos, já tenho muita merda com que me preocupar. Desconfio que essa seja uma daquelas lições da vida que ninguém jamais coloca em prática, mas mesmo assim me sinto pronta.
Tente só me dar uma colher.

Eu sou a pessoa que joga a colher na piscina. Sem pensar duas vezes. Alguém que jogue uma colher na piscina não pode ser classificado como alguém que pensa duas vezes, eu sei. Eu penso milhões de vezes, mas não espero os pensamentos começarem a ficar coerentes para fazer as coisas. Eu penso antes, durante e depois que faço as coisas. Talvez seja por isso que eu faça muita coisa bizarra. Mas a outra opção é a seguinte:  começar a correr durante uma festa chique e procurar por um garçom. Quando encontrá-lo, entregar-lhe a colher, e dizer: “você sabe de quem é esta colher? Não é minha, e minha mãe me ensinou que eu não devo ficar com nada que não seja meu. Obrigada”.

Às vezes, eu tinha a sensação de que Alucinadamente Feliz fosse uma espécie de Pollyanna para a nossa geração: a de pessoas ansiosas, depressivas e com inúmeros transtornos que eu não saberia nomear, que se escondem do mundo “real” no Twitter, que

é como uma imensa turma de pessoas igualmente perturbadas que se escondem com você em banheiros e a fazem rir dentro do forte de travesseiros que você construiu num quarto solitário de hotel. Muitas delas sofrem dos mesmos medos, o que as mantêm igualmente isoladas, mas encontramos uma forma de estarmos sozinhas juntas.

Por que alguém ficaria feliz por ganhar muletas? A pessoa poderia ficar feliz por não precisar usá-las, diria Pollyanna. Por que a pessoa ficara feliz em ser insone, sofrer crises severas de ansiedade e estar com o pé rachado, e sangrando, por causa da artrite reumatoide? Porque isso fez com que ela saísse, de roupão, de madrugada, em uma rua de Nova Iorque, para apreciar a neve, disse Jenny Lawson.

Parecia que eu ia congelar, mas o frio logo anestesiou minhas mãos e pés doloridos. Andei devagarinho, descalça, até o fim do quarteirão, deixando as sapatilhas para trás como uma forma de me orientar na volta. Fiquei de pé no fim da rua, pegando a neve com a boca, e ri baixinho quando me dei conta de que, se não fosse pela insônia, pela ansiedade e pela dor, eu jamais teria ficado acordada para ver a cidade que nunca dorme dormindo e coberta para o inverno. Sorri e me senti tola, mas da melhor forma possível.

Ser alucinadamente feliz é como brincar de jogo do contente, mas de uma maneira mais intensa; é viver sob a égide do jogo do contente, é viver sabendo que as coisas muito ruins vão te paralisar, mas quando você conseguir voltar a se movimentar, pode ficar como um guaxinim empalhado com os braços para o alto, ou seja: tanto como se estivesse comemorando um gol do seu time quanto como se estivesse passando por uma revista policial ou fazendo uma prece. As interpretações são diversas, e as perspectivas também. Eu, como leitora de quadrinhos e brasileira, sempre vejo o guaxinim empalhado da capa do livro como o Rocket Raccoon – cujo planeta de origem é um manicômio, sabiam? – , sendo assaltado e gritando: “Perdi, perdi!”.

Alucinadamente Feliz é sobre continuar a ser, mesmo quando não se sabe muito bem ser o quê; é sobre viver, porque uma vez que se descobre que é possível ser uma pessoa estranha de um jeito “engraçado e excêntrico” ao invés de ser estranha de um jeito “triste e deprimente”, sobreviver não é o bastante. Talvez possa parecer muito difícil viver, mas, quando isso acontecer, sempre é possível se lembrar do conselho que Neil Gaiman deu à Jenny Lawson quando ela teve uma crise de ansiedade quase paralisante e não conseguia gravar seu audiobook (é audiolivro, né?): “finja que é boa nisso”.

Feminismo legendado

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Sou feminista. Já disse isso, inúmeras vezes, para meus familiares, meus amigos, e para quem mais eu encontro pelos caminhos que tenho percorrido. Acho importante me assumir como feminista, e faço isso sempre. E também acho importante contribuir para que outras pessoas percam o medo de se assumirem como feministas e, para isso, é imprescindível que elas saibam um pouco mais sobre o Feminismo.

O nome deste blog, “Livros Legendados”, poderia ser resumido, de maneira simplista, como uma tentativa de explicar os livros que leio. Mas, como já anunciei, no post inicial, o meu intuito não é o de explicar os livros que leio, mas de falar sobre as impressões que tive a partir da leitura dos referidos livros. A legenda, aqui, não está na função de traduzir uma língua, mas de traduzir impressões. A partir do meu lugar de fala (mulher, feminista, apaixonada por literatura, professora, entre outros), eu proponho uma interpretação para os livros que leio.

Na esteira do que faço com os livros, neste post quero sugerir interpretações, ou melhor, expor as minhas impressões, sobre alguns pontos do Feminismo. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto, nem de fazer uma tese sobre cada um dos pontos abordados. (Aliás, peço desculpas, de antemão, para o caso de algumas explicações parecerem um pouco simplistas. Se for o caso, posso indicar, nos comentários, livros que sejam mais específicos e direcionados aos temas aqui abordados.) O que pretendo é compartilhar com as pessoas algumas coisas que me fizeram enxergar o movimento feminista como um importante aparato de reflexão sobre os males que o sexismo instaura no mundo. Além disso, quero pontuar que mais do que nos levar a refletir sobre o sexismo, o Feminismo nos ajuda a combatê-lo.

Quero começar dizendo que estou cansada. Estou tão cansada de falar a mesma coisa durante todos os dias da minha vida, que se não acreditasse que o Feminismo fosse uma importante ferramenta para a construção de caminhos mais aceitáveis, eu largaria os béts. Sou uma feminista cansada. Cansada de tentar explicar, em todos os ambientes (“reais” e virtuais; o dualismo é simplista, mas vocês entenderam a ideia) que, não, nós, feministas, não padecemos de um mal que nos tira o senso de humor. Nós escolhemos não usar o senso de humor para validar preconceitos.

A incompreensão é tão grande que eu, com a minha mente de professora, chego a pensar que a minha didática seja péssima. E isso me deixa absurdamente deprimida. Então, eu começo a refletir melhor, e mando o ego ficar sossegado, porque a coisa é bem maior do que ele. O problema não é comigo, é algo muito maior, que independe de mim para existir. A incompreensão sobre os pressupostos feministas é o reflexo de uma incompreensão internalizada por meio da insistência do patriarcado de criar pessoas com a visão viciada.

As pessoas estão tão viciadas em ver as coisas de um jeito limitado, que quando são convidadas a terem a visão ampliada, acham que, na verdade, o convite é uma forma que os outros encontraram para cegá-las. Então, como sintoma da neurose, começam a surgir as mais errôneas interpretações. Por exemplo, uma pessoa diz que feministas não gostam de homens. E fica irritadíssima com esses “seres” por eles odiarem uma exímia evidência do processo evolutivo.

Aí aparece uma Feminista paciente e explica que a pessoa está confundindo Feminismo com misandria. O Feminismo não incita o ódio aos homens, a misandria, sim. Além disso, a feminista paciente diz que a misandria não é um movimento organizado, sistemático, ela se manifesta individualmente, mas não coletivamente. Então, quando a Feminista paciente pensa que conseguiu se fazer entender, aparece alguém para dizer que se nós somos feministas, ele pode ser machista. E que, além disso, ele vê muita mulher machista por aí. Aí a Feminista paciente tem de explicar que Feminismo não é o feminino de machismo, e que os termos não são semanticamente equivalentes.

Ela explica, detalhadamente, que o Feminismo se contrapõe ao machismo, sim, mas não tem o intuito de propor uma inversão de papéis. O machismo sustenta a ideia de que o homem seja superior a mulher, e que ela deve se submeter a ele. E o Feminismo postula que homens e mulheres são (deveriam ser) seres humanos dotados de autonomia e não precisam se submeter uns aos outros. E que a existência de mulheres machistas é uma consequência do machismo, e não a causa dele. Ela ainda cita a bell hooks, teórica feminista negra que consegue ser, ao mesmo tempo, apaixonada pela causa feminista (entre outras causas) e extremamente didática. A Feminista paciente diz que no livro “Feminism is for everybody”, bell hooks ressalta que: “o feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, com a exploração sexista e com a opressão”.

A pessoa coloca a mão no queixo e diz que acha que o nome Feminismo deponha contra a causa. E começa a elencar teorias sobre a etimologia da palavra Feminismo para provar o seu ponto de que o nome prega, sim, a superioridade da mulher porque só diz respeito às fêmeas.

A Feminista paciente, de forma cautelosa, começa a falar para a pessoa sobre o contexto do surgimento do Feminismo. Naquela época (como na atual, né?), as mulheres precisavam de um termo que demonstrasse a seguinte afirmação: “somos mulheres, e embora vocês queiram que anulemos nossa individualidade para privilegiarmos os homens, fazemos questão de dizer que não, não somos a sombra de vocês, somos seres de carne e osso, e temos autonomia”. A Feminista paciente ainda diz que, além disso, a insatisfação de uma pessoa com uma palavra não pode apagar todas as coisas boas que o movimento por ela nomeado conquistou. Ela aponta para o fato de que tal incômodo com a palavra Feminismo, mesmo que de maneira inconsciente, acaba por evidenciar um pensamento machista, porque o questionamento passa a ideia de que um movimento que prega a igualdade não deve ter uma clara referência à mulher no nome.

As pessoas que questionam o uso do termo Feminismo para um movimento que prega a igualdade entre as pessoas não questionam o fato de se usar a palavra Homem para representar a humanidade, não é? A Feminista paciente fala, ainda, que, como disse Julieta, personagem da peça “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, “aquilo a que chamamos rosa, teria o mesmo perfume mesmo que lhe déssemos outro nome”. O mesmo acontece com o Feminismo. As lutas por ele empreendidas não deixam de ser legítimas e necessárias por causa do nome Feminismo. O inimigo é o sexismo, não o termo Feminismo.

Aí a pessoa se diz indignada porque, segundo ela, o Feminismo só fala do empoderamento da mulher. E a Feminista paciente diz o que parece óbvio, mas a pessoa com a visão viciada não consegue enxergar: o homem nunca teve a sua autonomia negada, a mulher, por outro lado, não teve a sua reconhecida. Por que o Feminismo vai enfatizar a autonomia do homem se ela já é constituída? O patriarcado assume que a única autonomia válida seja a do homem. O Feminismo luta para que a autonomia da mulher também seja legitimada. A Feminista paciente ainda diz que, como o Feminismo luta pelo fim do sexismo, ele luta, indiretamente, para que o homem não tenha de seguir papéis  pré-determinados como, por exemplo, o de ser o provedor da casa.

A pessoa diz que o Feminismo é muito cheio de regras absurdas, como a ideia de que a mulher não pode exercer os serviços domésticos. E, mais absurda ainda, conforme a pessoa, é a história de que o homem deve ajudar a mulher com os serviços domésticos que, bem, são de responsabilidade dela. A Feminista paciente diz que o Feminismo não tem mandamentos, tem posicionamentos, e nenhum deles diz que a mulher não pode se dedicar aos serviços domésticos, embora o Feminismo problematize, sim, até que ponto os serviços domésticos – sejam eles remunerados ou não – são opção e até que ponto são imposição (a maioria das mulheres que trabalha como empregada doméstica é negra; isso não merece uma reflexão apurada sobre racismo, machismo e a distribuição de renda no Brasil?).

O Feminismo defende que a mulher tenha o direito de escolha. Se a escolha da mulher for a de se dedicar às atividades domésticas, está tudo bem. O que não está bem é o fato de a mulher ser diminuída por realizar afazeres domésticos. É isso que o Feminismo questiona: a ideia de a mulher ser diminuída pelas suas escolhas. Se a mulher optar por trabalhar com atividades domésticas (em sua própria casa ou prestando serviços a outrem), que ela seja respeitada. Se a mulher optar por trabalhar em outros âmbitos (seja em profissões que necessitam de formação acadêmica ou não), que ela seja respeitada por isso.

A Feminista paciente ainda diz que não existe isso de serviços domésticos serem destinados à mulher e que essa história de o homem “ajudar” a mulher nos serviços domésticos é algo muito medíocre; porque homem fazer serviço doméstico não é prestar um favor à mulher; dizer que isso é ajudar a mulher, é assumir que trabalhos domésticos sejam função dela, e tentar posar de altruísta. O homem fazer serviços domésticos não é altruísmo, ele não está ajudando a mulher a realizar um serviço que é inerente à condição feminina, porque não existe isso de que “arrumar casa e cozinhar” seja trabalho para mulher, isso é função dos moradores da casa, sejam eles homens ou mulheres. Logo, uma maneira mais justa de se lidar com a situação, é adotar a divisão, igualitária, na hora de se realizar as tarefas domésticas.

Então a pessoa, meio enraivecida, como se tivesse presenciado uma injustiça, diz que já que a mulher quer direitos iguais, terá de recusar bebida gratuita nos bares e, além disso, terá de recusar quando lhe disserem que ela paga menos para entrar em boates, bares, entre outros lugares. A Feminista paciente explica que “Ladie’s Nights” é um falso privilégio; é uma das manifestações do dito “lobo em pele de cordeiro”. As mulheres não são privilegiadas por pagarem menos e terem bebidas liberadas, elas são usadas como “iscas” para atraírem o público masculino que, por vezes, acaba por ignorar quando a mulher diz NÃO. Esses homens pensam que o fato de a mulher ter ingerido bebida alcoólica sem pagar por ela e estar desacompanhada em algum lugar (e, aqui, não falo apenas do âmbito que engloba os bares, as boates, as baladas, enfim), é o mesmo que estar usando uma placa que diz: EU SOU UM BELO PEDAÇO DE CARNE. COMA-ME.

Então a Feminista paciente pensa que a pessoa começou a construir uma visão menos deturpada do Feminismo. E a pessoa aparece com o “argumento” de que tem mulher que não se dá ao respeito, que sai transando com todo mundo, então o homem tem de puxar a rédea dela. Além disso, diz a pessoa: “há mulheres que usam roupas escandalosas e depois não sabem por que são estupradas”. A Feminista paciente, além de dizer que é ofensiva a ideia de comparar uma mulher a uma égua, que precisa andar a partir dos comandos de um homem, volta a falar sobre a questão da autonomia, de que ninguém tem o direito de ditar regras sobre como o outro deve viver, sobre como o outro deve pautar a sua vida sexual, sobre o seu corpo, enfim (sim, a Feminista paciente fica um bom tempo explicando que o feminismo  defende o direito de escolha da mulher sobre o seu corpo e, por isso, tem como uma de suas lutas a descriminalização do aborto, para que a mulher possa escolher se vai ou não prosseguir com uma gravidez). A Feminista paciente diz, com convicção, que nós somos seres de desejo, e que negar isso, é negar a nossa constituição humana.

A Feminista paciente aproveita para dizer que quando falamos que alguém não se dá ao respeito, estamos repetindo um discurso sem saber como ele foi construído. Dizer que uma mulher não se dá ao respeito, é querer tolher a autonomia dessa mulher, porque partimos do pressuposto de que ela deve andar conforme as nossas regras, conforme o que acreditamos ser o “certo”. E isso é o mesmo que postular que a mulher deve desconhecer o seu próprio corpo, desconhecer e ignorar os seus desejos, ignorar a busca pelo prazer. Em síntese, é dizer que a mulher deve se anular. Além disso, a Feminista paciente postula que dizer que uma mulher foi estuprada por estar usando roupas curtas é uma das mais cruéis falácias propagadas pela cultura do estupro. Isso é transformar a vítima em ré.  A Feminista paciente conclui dizendo que quando o assunto é respeito, não deve haver um “se”.

Então a pessoa fica em silêncio por alguns segundos e dispara que sente vergonha pelas mulheres que usam roupas curtas porque isso é se desvalorizar, é desvalorizar a todas as mulheres. A Feminista paciente diz, de coração, que não sente vergonha pelas mulheres que usam roupas curtas; ela sente é orgulho por ver as mulheres se sentindo bem com a roupa que escolheram, não com a roupa que o patriarcado fez com que muitas mulheres acreditassem que fosse a única opção. A Feminista paciente ainda enfatiza que jamais aceitará conservadorismo em pele de Feminismo.

A pessoa diz que não é conservadora, mas acha horrível ver/escutar mulher xingar palavrão. A Feminista paciente pergunta se a pessoa se incomoda quando vê/escuta homem falar palavrão, e ela responde que não, o problema é quando mulher pensa que é homem e sai usando um linguajar chulo. A Feminista paciente diz que se a pessoa tivesse falado que não gosta de ver quaisquer pessoas, independentemente de gênero, falando palavrão, ela respeitaria, embora acredite que esta postura seja um tanto quanto conservadora. Mas quando a pessoa disse que o problema está no fato de mulher falar palavrão, ela assumiu uma postura machista, porque assumiu que o direito de extravasar, por meio do uso de palavrões, seja algo exclusivo do homem.

A Feminista paciente deixou bem claro que acha tranquilo, sim, o ato de se falar palavrão se for para extravasar, mas, em momento nenhum apoia o slut shaming, que é, em linhas gerais, quando se chama a mulher de puta. As pessoas fazem isso da forma mais cruel possível. Chamam mulheres de putas porque elas usam roupas curtas. Chamam mulheres de putas/piranhas e derivados por elas não terem medo de falarem sobre sexualidade, sobre vida sexual, entre outros. Em suma, slut shaming é julgar o caráter de uma mulher por um motivo aleatório e, para tanto, usar um xingamento de cunho sexual.

A pessoa tenta mudar o rumo da prosa e menciona que conhece uma mulher que diz que não é feminista, é feminina. A Feminista paciente diz que o raciocínio da tal mulher parece estar confuso, porque o Feminismo luta para que as mulheres sejam o que elas quiserem ser, para que elas sejam livres. Então, em momento algum, o Feminismo pretende “masculinizar” as mulheres. O que ele propõe é uma reflexão sobre os papéis de gênero, sobre o que se postula “ser coisa de homem” e “ser coisa de mulher”, ou seja, ele propõe uma reelaboração dos conceitos de “feminino” e “masculino”, mas não para por aí, o Feminismo também se atenta para a questões que envolvem pessoas transgênero.

A Feminista paciente diz que o Feminismo propõe que pensemos sobre como as imposições de papéis de gêneros são prejudiciais à constituição das pessoas como sujeitos. Mas o Feminismo jamais vai dizer para uma mulher não usar maquiagem ou não usar salto. Ele vai dizer para a mulher que ela tem uma escolha: se ela quiser, pode usar salto, mas se não quiser, não precisa usar, mesmo que se sinta desconfortável, porque disseram-lhe que mulher só fica elegante de salto. O Feminismo vai dizer que uma mulher pode usar maquiagem, se isso faz com que ela se sinta bem, mas se ela não quiser usar, não precisa, porque a ideia de que a maquiagem faz com que a mulher fique bonita é uma imposição de padrões de beleza que oprimem, e, portanto, devem ser repensados.

A pessoa dá um sorriso de “agora, vou te colocar entre a cruz e a espada” e diz que não compreende a falta de coerência das feministas que criticam o “Lingerie Day” e acham normal aquele bando de mulher desfilando de sutiã pelas ruas na “Marcha das Vadias”. A Feminista paciente faz toda uma explanação sobre o fato de que uma das coisas interessantes do Feminismo é que ele não é linear. Ela diz que o Feminismo não tem um posicionamento único, canônico, sobre inúmeras questões; ele tem tendências diversas, ele é um movimento plural. As tendências feministas que se opõem ao “Lingerie Day” o fazem com base na ideia de que neste evento, a mulher é objetificada, está ali para receber um “selo de qualidade”, para ser “comprada” pelo homem que melhor puder bancar as melhores lingeries, que, claro, são as únicas coisas das quais uma mulher precisa, é tudo o que uma mulher precisa para ser mulher, para ser completa, né? (a Feminista paciente pede para explicar que foi irônica). Já na Marcha das Vadias, a mulher está utilizando o corpo como forma de protesto. E antes que a pessoa comece a questionar o uso do nome “vadias”, a Feminista paciente diz que o nome é usado de forma irônica, ressignificada, não para diminuir as mulheres como ocorre quando se faz slut shaming.

A pessoa diz que ainda acha isso tudo muito estranho e que só falta a feminista dizer que acha certo mulher com mulher ou homem com homem, o que é um absurdo, porque Deus fez a mulher para o homem, e não para outra mulher.

A Feminista paciente diz que o fato de a pessoa achar tudo muito estranho é um reflexo do sexismo, do sexismo institucionalizado, que chamamos de patriarcado. Ele não abre possibilidades para além do postulado por um conjunto de regras tiradas de sabe-se-lá-onde que vestem um falso manto de organização para perpetuarem a opressão. A Feminista paciente diz que, no início da conversa, falou a palavra autonomia. A Feminista paciente diz que, como já mencionou anteriormente, o Feminismo não abre mão da ideia da autonomia. Logo, dizer que uma pessoa não deve ter autonomia sobre a sua orientação sexual não é algo que seja razoável; é bastante questionável, na verdade.

A pessoa diz que a Feminista paciente é muito conivente com coisas erradas, e que se tem uma coisa que ela não poderá negar é o fato de que mulheres que questionam muito não arrumam marido, porque nenhum homem aguenta mulher buzinando na orelha dele.

A Feminista paciente começa a ficar impaciente, e diz que, quando descobriu que podia questionar, a mulher também descobriu que, se não quisesse, não precisava se casar, porque descobriu que, mais do que encontrar um parceiro, importava-lhe se encontrar. E, de posse de um conhecimento sobre si, seu corpo, sua sexualidade, sua inteligência, enfim, a mulher concluiu que, se quisesse se casar, e um homem dissesse que, para isso, ela teria de ficar mais calada, ela não se casaria com esse homem, porque não precisava de alguém lhe dizendo como deveria agir.

A pessoa diz que, com esse tom, a Feminista paciente (que, neste momento já se metamorfoseou em Feminista impaciente) não vai angariar simpatizantes para a sua causa, que ela deve falar de maneira mais suave. A pessoa ainda fala, como se estivesse ministrando uma aula sobre planetas e mitologia, que homens são de Marte, e mulheres são de Vênus. Ela se demora em dizer que Marte é o deus da guerra, e que Vênus é a deusa do amor. E que homens têm de, naturalmente, serem a voz forte, a voz da guerra, e mulheres serem uma voz que transmita amor, paz.

A Feminista impaciente diz que a pessoa deixou claro que, em momento algum, tinha a intenção de se tornar simpatizante da causa feminista, e isso não tem nada a ver com o tom das explicações. A pessoa não tinha a intenção de se tornar uma simpatizante da causa feminista porque, durante toda a conversa, demonstrou resistência a um dos baluartes do Feminismo: a autonomia. Quando se reconhece a autonomia da mulher, não se postula que ela tem de ser dócil, que ela não pode dizer tal coisa, que ela não pode se vestir de tal maneira, que ela não pode se comportar de tal maneira. Reconhecer a autonomia de uma mulher é compreender e respeitar o fato de que ela faz as suas próprias escolhas, e isso inclui usar o tom que achar necessário para falar. A Feminista impaciente diz, quase como em um grito de libertação, que mulheres não são de Vênus, são de onde quiserem ser.

Ainda não entenderam o porquê de eu estar cansada? Estou cansada dessa incompreensão premeditada, dessa incompreensão-escudo, dessa incompreensão que visa à manutenção do modelo patriarcal, que reduz a mulher a um ser desprovido de vontades, de desejos, de direito de escolha, enfim, que reduz a mulher a um não ser,  desprovido de autonomia. Estou cansada do machismo. Eu estou cansada, mas, como falei no início deste texto, eu não largo os béts porque acredito que o Feminismo seja uma ferramenta que nos permita desencavar, das montanhas de empecilhos colocados pelo patriarcado, a autonomia.

Do título

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Há algum tempo, venho pensando na ideia de ter um blog para falar sobre os livros que leio. A ideia tomou forma, há algumas semanas, depois de eu ter ganhado dois livros, de uma pessoa muito querida, que falam, de formas diferentes, sobre a literatura. Que abordam, de maneiras distintas, porém belas, alguns dos árduos caminhos pelos quais as palavras ganham corpo e se tornam livros.

Estes livros – “A página assombrada por fantasmas”, do Antônio Xerxenesky e “Bonsai”, do Alejandro Zambra – me fizeram lembrar que eu não só gosto de ler como também gosto de falar sobre o que leio. Gosto de falar sobre as mais diversas emoções que os livros me proporcionam. É por isso que senti a necessidade de criar este blog. Para falar, com tudo o que as palavras permitirem, sobre os livros que eu leio.

Mas nem só de livros vive a Cleonice. Também vivo de músicas, de filmes, de quadrinhos, e de tantas outras coisas que não precisam ser citadas. Então, sim, o foco do blog é a literatura, mas quando a minha alma pedir, falarei sobre a arte em suas mais diversas manifestações, ou melhor, falarei sobre o que a arte, em suas mais diversas manifestações, provoca em mim. Por isso, podem trocar a palavra “livros” no início do título deste blog, por “arte”. Pretendo imprimir a minha legenda, a minha identidade, nas resenhas que eu escrever. Isso pode parecer pretensioso, mas não é mais pretensioso do que ter o título do blog escrito “tudojuntoemisturado”, não é? Não, isso não é pretensão, é só uma manifestação de amor por James Joyce.

Os leitores mais atentos já perceberam que eu homenageei, no título deste post, um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis. “Do título” é o capítulo inicial do romance “Dom Casmurro”; capítulo no qual o narrador, Bento Santiago, explica o porquê da escolha do título para o romance que escreveu. Mas o título do post não é a minha única homenagem ao meu escritor preferido. Criar este blog, hoje, dia vinte e um de junho, também é uma maneira de homenagear o Bruxo do Cosme Velho, uma vez que, se estivesse vivo, hoje ele faria aniversário.

O nome do blog foi gentilmente sugerido por um amigo, quando pedi, no facebook, por sugestões. Gostei de todas, mas Livros Legendados me surpreendeu positivamente, porque  é um nome tão rico de interpretações. Uma leitura simplista poderia fazer com que interpretassem que a minha intenção é explicar os livros, assim como as legendas explicam os mapas, mas é mais do que isso. Acho que a ideia se aproxima mais da legenda dos filmes, porque ali temos não só uma tradução da língua, temos uma tradução de cultura. E cada interpretação não é fruto de todo um processo cultural?

Nessa perspectiva, espero poder compartilhar com as pessoas que lerem o blog um pouco dos ricos universos que os livros compartilham comigo, religiosamente, todos os dias.

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