Os dois primeiros episódios da segunda temporada de Demolidor são bastante introdutórios. Tem-se um panorama da Cozinha do Inferno após a prisão de Wilson Fisk, e a introdução de uma nova “ameaça”: um assassino implacável, com o diferencial de que, dessa vez, os alvos são pessoas que cometeram crimes. Nesse contexto, a firma de advocacia Nelson & Murdock pega um novo caso.
O cliente é Grotto, que sobreviveu, o único até aquele momento, a um ataque do desconhecido assassino que assola o bairro nova iorquino em que vivem Karen Page, Foggy e Matt. A promotora Reyes – que encarna o papel de caça aos justiceiros – se dispõe a incluir o sobrevivente no programa de proteção à testemunha, se ele concordar em ajudá-la a encontrar o assassino. Ele concorda, é usado como isca, o plano da promotoria fracassa e começa o terceiro episódio, isto é, a segunda temporada começa efetivamente.
Como anunciei no título deste post, quero compartilhar algumas das impressões que me acompanham após eu ter assistido à segunda temporada de Demolidor. E, para fazê-lo, elegi o terceiro episódio da série, intitulado Para servir e proteger, como chave de leitura. A meu modo de ver, no episódio em questão são apresentadas situações que serão reiteradas e complementadas ao longo da temporada.
No início do terceiro episódio, temos uma cena propositalmente borrada, que lembra um devaneio ou remonta lembranças de uma pessoa muito ferida. Na cena, Matt recebe cuidados em um lugar que parece ser uma igreja. No plano seguinte, ele aparece em um telhado, acorrentado. Pouco tempo depois, descobrimos que seu algoz é o assassino – a quem a promotoria, a mídia, a polícia e os civis chamam de Justiceiro – que estava exterminando os criminosos de Hell’s Kitchen. A partir daí, o episódio se desenvolve de um modo fascinante. O Demolidor e o Justiceiro travam um diálogo filosófico que é um dos grandes momentos da temporada e, depois, com o desenrolar dos acontecimentos, temos a magnífica cena da escadaria, que está para a segunda temporada como a cena do corredor está para a primeira.
Mais do que os melhores diálogos e a segunda melhor cena de ação da série, o terceiro episódio funciona como uma espinha dorsal da segunda temporada e sustenta reflexões sobre a figuração dos heróis e vilões, suas motivações, suas dúvidas e suas certezas. É irresistível a tentação de procurar um elo entre a conversa que Matt e Frank tiveram sobre o que os diferencia e os aproxima e a cena da escada. Frank acredita que assassinar criminosos confessos e não confessos é um trabalho que tem de ser feito, e ele é a pessoa disposta a fazê-lo. Em contrapartida, Matt acredita que tirar a vida não é algo que cabe a quem quer que seja, e que dar uma segunda chance às pessoas é o certo a fazer.
O campo do simbólico no episódio é muito vasto, por isso elegi dois elementos a partir dos quais podemos começar a pensar a segunda temporada de Demolidor: as correntes presas ao corpo do Matt e a escadaria na qual ele trava um combate. A imagem do Demolidor acorrentado é uma referência direta aos quadrinhos do Justiceiro. E o teor da conversa, na qual Frank disserta sobre a ideologia que o norteia a fazer uso da violência extrema, também é algo presente nos quadrinhos. Só por isso, a cena já seria icônica. E ela traz mais; nos faz encarar o vocábulo “correntes” e a avalanche de discursos que perpassa esse significante. Grosso modo, corrente é o símbolo das relações entre o céu e a terra. Para Platão, há uma “corda luminosa” ao redor do mundo. Ela cumpre o propósito de unir o céu e a terra. Na mesma pegada, sobre a escada paira o simbolismo do problema entre o céu e a terra. No âmbito artístico, vê-se a escada como suporte para a ascensão espiritual.
A oposição entre o céu e a terra é análoga à figura do Demolidor. Mattew Murdock é católico e, como tal, trava batalhas barrocas entre o certo e o errado e, no processo, por vezes é corroído pela culpa. A ideia da escada sustenta a leitura que é chave para a conceituação do Demolidor. Durante o dia, Matt está nos tribunais, defende pessoas conforme os parâmetros da lei. Está no topo, sob o sol, sob a luz, sob os olhares. À noite, ele se transforma no Diabo de Hell’s Kitchen. Vai ao submundo, inferno, do bairro em que vive, esconde-se nas sombras e, a seu modo, combate o crime. O desafio que ele encontra é o de buscar o equilíbrio entre as duas faces da sua personalidade. Na maior parte do tempo, ele não encontra o equilíbrio; por isso, sua firma de advocacia fracassa.
Na segunda temporada da série, a dinâmica do Matt sob holofotes e do Matt sob as sombras pode ser lida a partir do modo com o qual ele se relaciona com Karen Page e com Elektra Natchios. A primeira, que já havia sido apresentada na temporada anterior, e assim como a segunda, é uma velha conhecida dos leitores de quadrinhos, é muito bem trabalhada nesta temporada. Seu relacionamento com Matt fica mais no campo do que é “puro”, para usar uma palavra cristã, isto é, do que é socialmente aceito. Porém, Karen dá a entender que não condena completamente os atos do Justiceiro. Ela diz que sabe que o que ele faz é errado, mas começa a titubear quando admite, com certo receio, que os assassinatos dele podem ter um efeito positivo no que tange à segurança das pessoas que vivem em Hell’s Kitchen.
Por outro lado, quando está com a Elektra, Matt age de modo mais enfático. Ele continua sendo contra métodos de extermínio, mas se permite ser mais direto. O que ele reprime na presença da Karen Page, sai por entre os dedos quando a Elektra está em cena. Esta, em detrimento daquela, mata com uma certa facilidade. Apesar de se distanciar da Elektra dos quadrinhos em diversos aspectos, a da série conserva algumas características inconfundíveis: a perspicácia, a precisão para cumprir as missões às quais é designada, entre outros.
De volta à simbologia da escada no terceiro episódio da segunda temporada, pode-se perceber que Frank permanece no alto, terraço, o que pode simbolizar a psicose oriunda do trauma (supostamente) advindo do fato de ele ter tido a família exterminada. Ele está imobilizado, mas dá pra fazer uma leitura com viés psicológico; ele acredita que tem uma missão, ela está cima de quase tudo. Mas o Matt, bem, ele desce. Não apenas do terraço/telhado; ele desce ao seu inferno pessoal, sua consciência. Ele é católico, tem a oposição céu/inferno encrustada na sua formação e tem de lidar com freios morais, correntes metafóricas. Sua sanidade é questionável também, claro, mas ele é mais consciente do que o Frank, que revive/reencena a morte da família diariamente, enquanto, do seu jeito torto, “combate” o crime. Aqui, caberia uma reflexão sobre o estatuto da violência e a incoerência de tentar resolver os problemas da violência por meio de atitudes e leis violentas.
Achei particularmente sublime a ideia de que os dois estavam no “topo” e, quanto mais pessoas o Matt socava, mais ele descia. É como se a linguagem narrativa nos desse a oportunidade de brincar com a ideia de herói. Matt, e qualquer outro herói, não é superior a ninguém por fazer o que faz. Seus pés seguem para o térreo, o chão, onde estão os pés de quaisquer pessoas. Toda aquela sequência da escada foi linda demais. Foi claustrofóbica e, como eu disse, carregada de símbolos. A iluminação, o som, as imagens, enfim.
Como já mencionei, acredito que dê para comentar a segunda temporada da série com base no terceiro episódio, e isso se confirma no nono episódio: Sete minutos no paraíso. O título nos remete à uma brincadeira na qual um menino e uma menina entram em um quarto, fecha-se a porta e, depois de sete minutos, eles são alertados de que o tempo passou. Geralmente, brinca-se disso em festas de adolescentes e se coloca, propositalmente, meninos e meninas que tenham interesse um no outro. O que acontece no quarto durante os sete minutos não precisa ser revelado para as pessoas que permanecem fora dele. No episódio, a ideia de se estar frente a frente com uma pessoa a portas fechadas é vivida por Frank Castle. Ele tem a oportunidade de ficar diante de alguém que pode lhe dar informações sobre Blacksmith, pessoa que supostamente é culpada pela morte da sua família.
O título do episódio nos remete, também, ao paraíso: céu. Além disso, aparece o sete, que é um número significativo e emblemático. Ele corresponde aos sete graus da perfeição, além de ser visto como o símbolo universal de uma totalidade. Entretanto, como boa parte do episódio se passa na cadeia, percebe-se que há um deslocamento do sentido da palavra paraíso. Matt aparece neste episódio em uma situação semelhante à do terceiro episódio. Quando ele se encaminha para o “buraco” da “Fazenda”, com o objetivo de descobrir o que aconteceu com crianças que sumiram, focalizam-se escadas de um jeito que lembra o enquadramento das escadas no terceiro episódio. A pegada da “derrocada” e da “ascensão” é muito forte no episódio também.
E há uma claridade nauseante na cena da cadeia. A luta principal acontece sob luzes fortes, que realçam, de modo claro, os movimentos certeiros de Frank Castle. Luz essa que também enfatiza a figura do Rei do Crime que, sentado à beira do leito do homem que Frank Castle ferira gravemente, saboreia um bife, e diz ao moribundo que os seus pulmões se encherão de sangue. Ele termina o discurso dizendo que só há lugar para um Rei do Crime na prisão. A câmera se afasta e, lá no fundo, como em um túnel, vemos Wilson Fisk em toda a sua majestade. Rei do Crime: nomeado e coroado. É uma cena fantástica.
Algo que me agradou, bastante, na temporada foi a divisão dos episódios em arcos. Os arcos do Justiceiro e da Karen Page foram superiores ao da Elektra, mas talvez isso seja fruto da expectativa. Eu esperava muito do arco dela, e me decepcionei com a maneira com a qual ele foi conduzido nos episódios finais. Ainda sobre os arcos, acredito que eles sigam uma estrutura de túnel na configuração dos episódios. Quando se está em um túnel, olha-se para frente, para aquela luzinha que tem no fundo dele, o objetivo. Na segunda temporada de Demolidor, cada personagem é conduzida por um túnel distinto e, eventualmente, os túneis se encontram, formam encruzilhadas. E, lá da prisão, Wilson Fisk coordena o encanamento por que passam os dejetos de Hell’s Kitchen. Encanamento que perpassa todos os túneis. Todos os caminhos passam pelo Fisk. Acho que, em termos de roteiro, é uma escolha justa. Arriscada, mas justa. Para ser Rei do Crime, é necessário saber reinar em qualquer lugar.
Não sei se para reforçar – ou forçar – o simbolismo, mas a escuridão que predomina nos episódios é bastante forte também. E aqui, entro num campo bastante pessoal: me incomoda muito. Acho que a escuridão atrapalha a visualização de certas cenas e me pergunto se ela não está lá para disfarçar o fato de que, tirando a cena da escada e a cena da cadeia, as outras foram mal coreografadas. Acredito que os diálogos da segunda temporada sejam melhor empregados do que os da primeira – que, invariavelmente, serviam apenas como ponte para as cenas de luta -, mas isso não significa que eu ache plausível a exibição de cenas de luta confusas.
Ainda sobre as coisas que me incomodaram na série, ressalto os desfechos corridos e ineficientes. A narrativa do Tentáculo (The Hand/A mão) deixou muito a desejar. E, nisso, a Elektra foi prejudicada. Já que ela foi posta como o Black Sky – Céu Negro -, deveria ter puxado o desenvolvimento da história do Tentáculo, que era para ser a “grande surpresa” da temporada, mas não passou de uma trama que, por ser mal desenvolvida, tornou-se desinteressante.
Céu Negro foi citado uma vez na história, quando Stick explica ao Matt qual é a batalha que ele travaria, e só voltou a ser mencionado no décimo segundo episódio. Com isso, a Elektra foi bastante descaracterizada. A personagem é ótima. Frank Miller criou uma personagem resistente e complexa. Ela teve uma ascensão brilhante, ao longo da série, mas a pressa dos episódios finais fez com que a personalidade dela fosse condensada, distorcida. A Elektra não é apenas a adaga sai – que, na série foi conseguida de um jeito bastante torto. Entretanto, o último episódio sugere que tanto a trama da Mão quanto a história da personagem Elektra serão retomadas na próxima temporada, o que pode sinalizar para o fato de que as coisas serão melhor explicadas.
Outra resolução que bastante desleixada é a do Blacksmith. Quanto a ele ser o Coronel Ray Schoonover, tudo bem, é plausível – embora, nos quadrinhos, ele seja um Skrull -, o que não funciona é o fato de ele ter sido abatido com muita facilidade. Ele esteve na guerra, é um estrategista, e não teve quase nenhuma reação diante do Frank. Achei que ele ofereceria um pouco mais de resistência.
Ainda sobre o Coronel Ray Schoonover, a casa dele, vista do lado de fora, me lembra muito a atmosfera da casa de The Amityville Horror. É curioso que quando Stick estava sendo torturado, e teve entalhes de madeira enfiados nas unhas, ele tenha dado uma risada desesperada e lunática que, associada aos dedos prolongados pelos palitos neles incrustados, por alguns segundos, fez com que a sua fisionomia se assemelhasse à do Freddy Kruegger, de A hora do pesadelo. Tais fatores me levam a pensar que foram inseridas algumas homenagens ao gênero “Terror” na segunda temporada de Demolidor.
A escuridão no fim do túnel, título do décimo segundo episódio que peguei emprestado para nomear este post, remete a uma postura niilista: não há luz no fim do túnel, há mais escuridão. Mas talvez a grande questão seja descobrir que o túnel não tem fim. Conceitualmente, concebemos o túnel como algo que conecta, por meio da escuridão, uma zona de luz à outra. Ele é o símbolo de todas as travessias. Mas quando se assume que no fim do túnel há mais escuridão, mergulha-se no desespero. Talvez a luz que esteja embaçada pela escuridão seja esta: a ideia da continuidade, da vida, que pode ser um tanto quanto claustrofóbica, mas também pode nos proporcionar momentos de frestas de ar e de esperança. E, mais do que isso, é importante que tenhamos em mente que não é necessário chegarmos ao fim do túnel para que possamos começar a viver. É dentro do túnel que estão a luz e a escuridão, é dentro do túnel que estamos.